Florianópolis, 12 de junho de 2003 | Zero | Página 2

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REPÓRTER QUE NÃO APURA I
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Deu pau no New York Times
Matérias falsas abalam credibilidade do maior jornal americano

Por Maycon Stahelin

Jayson Blair supostamente escreveu 73 matérias jornalísticas para o New York Times entre outubro de 2002 e abril de 2003. Supostamente porque pelo menos 36 dessas reportagens ou não foram feitas por ele ou não passavam de ficção. Foi o que o próprio jornal admitiu em uma matéria de quatro páginas no dia 11 de maio deste ano. Blair plagiou jornais e agências de notícias, inventou situações e declarações, descreveu locais e circunstâncias que via em fotografias para convencer seus editores que tinha estado naqueles lugares, mentiu tanto que levou o próprio NY Times a escrever que “o dano causado ao jornal e aos funcionários não terá se esvaído na próxima semana, no próximo mês ou no próximo ano.”

Os editores descobriram as invenções do repórter a partir de um artigo de Blair publicado na capa da edição de 26 de abril sobre um soldado desaparecido no Iraque. No dia 29 Robert Rivard, editor do San Antonio Express-News, enviou um e-mail ao NY Times afirmando que a matéria de Blair era muito semelhante a uma reportagem publicada em seu jornal em 18 de abril. “Continuei lendo o que pensei ser nossa própria reportagem republicada”, confessa Rivard. Pressionado pelas perguntas sobre o artigo, Blair deixou o jornal em que trabalhou por mais de quatro anos no dia do trabalho. Mas seus superiores haviam descoberto apenas a última das fraudes. Na verdade, Blair enganou seus chefes desde o princípio: a investigação interna descobriu que, ao contrário do que disse quando começou a trabalhar como estagiário, ele nunca terminou a graduação na Universidade de Maryland.

Duas semanas antes da demissão Blair escreveu outra matéria sobre fuzileiros feridos no Iraque. Um deles, escreveu o repórter, “questionou a legitimidade da sua dor emocional quando pensou no caso do colega na cama ao lado, um maratonista que tinha perdido parte da perna por causa de uma mina terrestre no Iraque”. Uma cena forte que Blair disse ter presenciado, mas que nunca ocorreu. O cabo James Klingel, que supostamente teria dito essa frase, disse que nunca viu Jayson Blair, só conversou com ele por telefone, e não tinha certeza se realmente teria dito aquela frase. “Li o artigo sobre mim no New York Times”, afirmou aos investigadores do jornal. “A maior parte daquilo eu não disse”, garante.

“Cada jornal, como cada banco ou departamento de polícia, confia que seus funcionários sigam determinados princípios, e a investigação em curso mostrou que o sr. Blair violou repetidamente o dogma básico do jornalismo, que é simplesmente a verdade”, escreveu o jornal mais influente dos Estados Unidos, e talvez do mundo, no seu pedido de desculpas ao público. No entanto, os responsáveis por supervisionar os repórteres não deram a atenção devida aos sinais de que Blair poderia estar quebrando o citado dogma.

Indícios ignorados -
Durante os quatro anos em que Blair trabalhou no Times, vários editores e repórteres expressaram dúvidas sobre sua maturidade e capacidade de trabalho. Os erros eram tão freqüentes, o comportamento tão antiprofissional, que em abril de 2002 Jonathan Landman, editor do caderno de Notícias Metropolitanas, notificou à direção de redação: “Temos de fazer Jayson parar de escrever para o Times. Agora mesmo.” Mas isso não aconteceu. Ele foi somente advertido que seu emprego estava em risco, e melhorou sua performance, segundo avaliação dos editores na época. Tanto que em outubro ele foi promovido para a editoria Nacional, e escolhido para cobrir o caso do franco-atirador de Washington. Em menos de uma semana, um artigo de Blair com detalhes da prisão de um suspeito saiu na capa do jornal, e as críticas surgiram logo em seguida. Tanto o procurador-geral dos EUA quanto um funcionário sênior do FBI negaram certos pontos da matéria, e até mesmo vários repórteres veteranos da sucursal do Times em Washington questionaram a veracidade das informações aos editores principais. No final de dezembro outra reportagem sobre o caso apareceu na primeira página com informações supostamente exclusivas de fontes internas não identificadas, e novamente de Blair foi contestado. “Não creio que alguém na investigação seja responsável pelo vazamento, porque grande parte disso está totalmente errado”, disse o promotor Robert Horan Junior, de Fairfax, estado da Virgínia.

Entre a primeira cobertura analisada, em outubro passado, sobre os franco-atiradores, até sua última reportagem, Blair despachou artigos afirmando estar em 20 cidades de seis diferentes estados dos EUA. No entanto, durante esse período ele não apresentou nenhuma conta de hotel, aluguel de carro ou passagem de avião. A única despesa que ele regularmente enviava para o jornal era do telefone celular. Gerald Boyd, um dos editores que apoiou a ascensão de Blair dentro do Times, admite que a distração em relação a esse detalhe foi um erro grave. “Ter um repórter nacional que deveria estar viajando para trabalhar para o jornal e que não apresenta nenhuma despesa dessas viagens em quatro meses é certamente algo que deveria ter chamado a nossa atenção”.

Politicamente correto demais -
Na matéria em que expôs o caso, o NY Times deu algumas razões para a continuidade e o crescimento de Blair na redação, apesar das constantes reclamações contra ele. Alguns achavam que ele tinha agressividade e estilo. “Esse cara é faminto”, disse o editor-executivo Howell Raines ao lembrar por que ele e Boyd escolheram o repórter para cobrir o caso do franco-atirador. O jornal ainda apontava para as poucas reclamações dos personagens dos artigos de Blair e para uma falha de comunicação entre os editores. Mas o real motivo para tanta paciência só apareceria mais tarde. No dia 14 de maio a direção do jornal convocou uma reunião com mais de 600 funcionários e jornalistas para discutir o caso. Em meio a diversas reclamações sobre o modo como conduzia a redação, Raines admitiu a sua parcela de culpa. O editor reconheceu que o seu complexo de culpabilidade de branco do sul dos EUA, região de intensos conflitos raciais, teve influência na sua decisão de dar tantas chances ao negro Jayson Blair.

Além da necessidade pessoal de Raines de não parecer racista, Blair foi beneficiado por uma espécie de sistema de cotas de diversidade étnica que existe na mídia dos EUA, ou seja, um número mínimo de negros que cada empresa deve ter, a chamada “ação afirmativa”. Em janeiro de 2001, Blair foi promovido a repórter em tempo integral com apoio do também negro Gerald Boyd, então subeditor administrativo. O editor-executivo na época, com aval do publisher do Times, deixou claro o compromisso da companhia com a diversidade étnica. Beatriz Singer, redatora do sítio Observatório da Imprensa, afirma, em artigo sobre o caso, que “fica realmente difícil dissociar a contratação de Blair da obrigação moral do jornal mais moralmente correto dos EUA”.

Conseqüências - O primeiro efeito da descoberta das fraudes de Blair foi a reunião interna, onde os problemas internos foram expostos em público. Arthur Sulzberger Jr., presidente da Times Co. e membro da família que controla o jornal há 107 anos, foi acusado, ao lado de Raines e Boyd, de “ter destruído a credibilidade do jornal”. Depois da investigação interna inicial no Times, que resultou no mea-culpa do dia 11 de maio, foi criada uma comissão com mais de 20 jornalistas, inclusive quatro de fora do jornal, para rever os procedimentos da Redação e verificar se o controle interno de checagem das matérias é tão rigoroso quanto deveria ser. “A saga de Jayson Blair é, acima de tudo, uma saga muito triste”, diz Christine Chinlund, ombusdman do Boston Globe. “Ela se institui como uma lembrança a todos os jornalistas e editores sobre a necessidade de uma vigilância extrema quanto a exatidão. Não podemos, jamais, abrir mão disso”.

Alberto Dines, editor do Observatório da Imprensa, afirma em artigo de 14 de maio que “mesmo que a punição do repórter Blair seja resultado de um surto de auto-flagelação puritana ficam automaticamente desfeitas e desmentidas as afirmações tantas vezes reiteradas – inclusive neste Observatório – de que a grande imprensa americana é incompetente e desleixada”. Segundo o Le Monde, dias depois de publicada a matéria em que foi acusado das fraudes Jayson Blair concedeu entrevista ao The New York Observer e zombou dos antigos patrões. “Eu sou uma ilustração do que está errado no New York Times. (...) Eu era um negro naquele jornal, e isso é algo que pode tanto prejudicar como ajudar um profissional na redação”. O diário francês também informou que Blair já assinou contrato com um agente literário e está negociando a publicação de um livro, além de sua participação em programas de televisão, e ainda estuda a elaboração do roteiro de um filme sobra a sua vida.

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