Lourival Sant’Anna
foi o primeiro jornalista brasileiro a entrar no Afeganistão
depois do atentado terrorista aos Estados Unidos, em 11
de setembro de 2001. Nesta entrevista ao Zero, o jornalista
conta a sua experiência nesta região conturbada,
onde todos os afegãos tinham ordem de matar qualquer
estrangeiro que vissem ao país. Sendo sua primeira
vez no Afeganistão, o repórter dá
uma visão clara dos costumes da região,
dos conceitos de guerra santa, dos perigos e nuances de
um correspondente de guerra. Faz um resumo da cobertura
jornalística que fez para o diário O
Estado de São Paulo, que se transformou no
livro Viagem ao mundo dos taleban, onde explica
as origens dos conflitos entre os países muçulmanos
e o interesse estratégico dos Estados Unidos na
região. Os temas como o homossexualismo, freqüente
no movimento do taleban,e a forma como os combatentes
conseguiram dinheiro, armas e força para dominar
90%do território do Afeganistão.
Zero - Como foi sua experiência
no Afeganistão? Como você chegou lá?
Lourival Sant’Anna - Bom, eu saí do
Brasil algumas horas depois do atentado e fui para Israel.
A gente não sabia muito bem a origem daquilo, mas
desconfiava que tinha alguma a ver com o terrorismo islâmico.
Então, fiquei cinco dias com os palestinos e os
israelenses, conversando sobre o terrorismo islâmico,
até que se consolidou a hipótese do Afeganistão.
No dia 18 de setembro, cheguei no Paquistão. O
Afeganistão estava fechado e fiquei em Islamabad.
Na manhã desse dia, conheci o Iqbal Afridi, que
é esta figura aqui. Ele, depois de ter trabalhado
no serviço secreto paquistanês e na linha
aérea paquistanesa, abriu uma locadora de automóveis
instalada no hotel onde me hospedei. Eu precisava de um
carro que me levasse aos lugares, a gente começou
a conversar e houve uma simpatia mútua. Eu não
tinha idéia do quanto ele era importante, isso
foi se revelando aos poucos, mas ele gostou de mim, e
eu gostei dele, e ao invés de ele alugar um carro,
passou a trabalhar para mim, como guia e intérprete,
acima de tudo. Depois a gente passou a ter um motorista.
Z
- Qual idioma você usou?
LS - Inglês. A grande importância do
Iqbal, em primeiro lugar, era porque ele é afegão,
e fala o pashtu, dialeto que é falado
no Centro-sul do Afeganistão, coisa que muita gente
em Islamabad e a maioria dos paquistaneses não
falam. Além do pashtu, fala urdu,
que é a língua administrativa do Paquistão,
que também é importante já que estávamos
no Paquistão, e mais o inglês. Ele tem três
mulheres e uma delas é australiana. Ele morou na
Austrália e na Holanda. Bom, este é o primeiro
aspecto do meu guia. O Iqbal é toda uma história,
daria um livro só sobre o Iqbal (risos). E segundo,
é que ele é homem cheio de conexões
e muito bem informado, com uma influente no Afeganistão
e no Paquistão, então, através dele,
nós chegamos às pessoas que puderam nos
levar até os taleban.
Z - Quantas vezes você tentou
entrar no Afeganistão e não conseguiu?
LS - Inúmeras. Ficamos três semanas
tentando, praticamente todos os dias, várias vezes
por dia, ao longo de uma fronteira de 2.500 quilômetros.
Eu sempre me baseava muito em Islamabad porque ali estavam
as informações da ONU, da Cruz Vermelha,
das organizações humanitárias. Havia
briefings diários do governo paquistanês
e também do único canal que existia entre
os taleban e o mundo, que era a embaixada deles
em Islamabad. Tudo ficava em Islamabad. Então eu
ficava com um pé em Islamabad e outro pé
na fronteira. A fronteira era muito importante porque
ali chegavam afegãos. Tinha uma área tribal
ao longo da fronteira do Paquistão e Afeganistão,
viviam ali 20 tribos afegãs. Além disso
por ali passavam migrantes afegãos vindos do Afeganistão.
Z
- Como foi para você, que não conhecia a
língua nem os costumes locais, lidar com uma diferença
étnica tão grande?
LS - Primeiro, a premissa intelectual é
o relativismo cultural. Você chega muito respeitoso,
tentando aprender, lendo à noite, e felizmente,
no Paquistão existem muitos livros em inglês,
porque o país foi colônia britânica
- o Afeganistão não - , mas existem muitos
livros sobre o Afeganistão. O embaixador do Brasil
em Islamabad foi quem me deu a primeira aula de Afeganistão.
Ele é historiador, um homem muito culto, estava
lá há cinco anos, me deu uma aula e indicou
rumos. Então passei a estudar. Além disso,
você tem que ter uma postura intelectual e de muita
humildade, perceber coisas, observar e imitar - como uma
criança. O Iqbal e outras pessoas iam me ensinando
as coisas, então eu não cometia muitas gafes,
e quando cometia, as pessoas me perdoavam porque não
me mostrava petulante. É um momento de muito emocionalismo,
de choque de civilizações. E eu vinha do
lado errado.
Z - Como foi a travessia da fronteira?
Quando você entrou no Afeganistão, você
sabia aonde ir, quem procurar?
LS - Sabia. Eu estava acompanhado do Iqbal e mais
três comerciantes da região, que faziam comércio
com os taleban e estavam guiando em jipe. Éramos
cinco. Eu não podia entrar no Afeganistão.
Havia uma ordem, um decreto dos taleban, para
a população matar qualquer estrangeiro que
visse dentro no país. Todos os estrangeiros tinham
sido expulsos. Havia uma jornalista inglesa presa pelo
regime. Então, eu sempre disse para o Iqbal que
queria entrar e ir direto até os taleban,
antes que eles me encontrassem. Essa foi uma premissa
que a gente pode discutir, porque é uma questão
de ética. Então fomos até o quartel-general
dos taleban, em Spin Boldak, que é uma
cidade no sul do Afeganistão, distante 103 quilômetros
ao sul de Kandahar, que era seu quartel-general e da Al
Qaeda. O quartel-general em Spin Boldak, era sede de um
governo regional dos taleban e chegando lá
o dono do jipe, que era o comerciante mais importante,
desceu e falou “eu tenho um jornalista brasileiro
maluco aqui que quer conversar com vocês”.
O soldado retrucou: “bom, já que ele está
aqui, então vamos ver o que ele quer”. Nós
todos entramos e tinha três governantes locais:
um militar, dois civis e mais adiante, entrou um mujahedin,
um veterano combatente da liberdade, anterior aos taleban,
e que participou da manifestação para a
expulsão dos soviéticos, entre 79 e 89.
Esse homem, tinha sido, fui saber depois, governador da
província de Kandahar e fez um acordo com os taleban,
entregando a província para eles. Quando a Aliança
do Norte avançou em relação ao sul,
sobre o tapete de bombas americanas, esse homem, que se
chama Gul Agha, passou a liderar a resistência contra
os taleban e hoje reassumiu o cargo de governador
da província de Kandahar. O Iqbal esteve lá
de novo e ele falou: “Chama seu amigo para vir aqui
para a gente conversar mais”. A experiência
dele foi muito boa porque chegou a prolongar a entrevista.
Os taleban não estavam querendo facilitar,
estavam muito nervosos por eu estar lá, achavam
uma esculhambação eu estar sendo recebido
daquela maneira. A hospitalidade é um fator muito
importante na cultura deles. Uma vez que você esteve
lá, deve ser bem recebido. A idéia é
não deixar entrar.
Z
- Que perguntas você fez?
LS - Eu já vinha lendo muitas coberturas
de jornal, então eu fiz perguntas mais profundas,
sobre a visão deles de mundo. Por que eles achavam
que a religião podia reger todos os aspectos da
vida e do governo; por que não realizam eleições?
Se diziam que a população estava contente;
como eles viam o futuro, o conflito com os Estados Unidos?
E, claro, a visão que tinham do Osama Bin Laden.
Foram perguntas mais aprofundadas, as coisas básicas
que não estavam mastigadas naquele momento. Eles
também me disseram coisas espontaneamente e, no
final, rezaram para eu me converter ao islamismo.
Z - Está convertido?
LS - (Risos) Não, não. Foi uma conversa
cheia de climas, cheia de trocas. Teve também uma
discussão sobre a jihad, que era uma discussão
que eu vinha levando com os líderes religiosos
e os professores do taleban que encontrei antes,
diretores de escolas religiosas onde eles estudaram. Eu
estava muito intrigado de como a religião poderia
justificar, ou servir, ou ser usada para justificar um
atentado como o World Trade Center. Então, o que
significava guerra santa, jihad? Eu estava tentando
mastigar esse conceito, comparar com o cristianismo também.
Eram discussões assim.
Z - Quanto tempo você permaneceu
no Afeganistão?
LS - Algumas horas. Não podia ficar lá
nem falar com ninguém. Eu entrei totalmente mudo,
vestido de afegão, e realmente eu não estava
lá, para todos os efeitos. Claro, tiramos fotos,
mas não do taleban, não podia.
Fiz anotações discretas. Estava sem óculos,
só esqueci o relógio, não devia estar
nem de relógio porque eu não devia ser reconhecido
como um estrangeiro. Mas nós descemos do jipe dentro
de um pátio, bem além destas tendas do taleban,
de um comerciante que fazia negócio com esses três
homens que estavam me acompanhando. Lá a gente
pôde ficar conversando um pouco, mas logo chegaram
uns sujeitos estranhos, na verdade o estranho lá
era eu, e o Iqbal gritou “ taleban”. Ai todo
mundo entrou no jipe e nós demos umas volta no
sul do Afeganistão, até que ele disseram
“olha, vamos voltar, não dá mais para
a gente ficar arriscando” . Então a gente
voltou e foi um momento de tristeza para mim.
Z
- O que move um jornalista a fazer esse tipo de cobertura,
sabendo que pode morrer, como no caso do Daniel Pearl
?
LS - É a curiosidade, no meu caso. É
porque eu sabia que os taleban são pessoas
que nunca existiram e nunca vão voltar a existir.
Um bando de seminaristas, estudantes de religião,
órfãos de uma guerra, da guerra dos anos
80, que cresceram em um campo de refugiados e depois viveram
nos braços das escolas religiosas, onde eles aprenderam
uma visão do Corão muito peculiar, que é
a seita wahabica, originária da Arábia
Saudita no séc. XVIII, e que, até hoje,
a Arábia Saudita fomenta nesses países.
Eles têm uma utopia islâmica de resgatar o
islamismo puro, livre da influência de qualquer
religião. Daí a destruição
e intolerância com qualquer religião. Viveram
a vida no ambiente do monastério das escolas religiosas
e de repente se transformaram em um grande braço
armado do Islã, tomam o país e procuram
colocar em prática estes conceitos. Mas eles tinham
uma experiência limitada de vida, por exemplo, eles
não tinham nem contato com mulheres, e muitos não
sabiam o que fazer com as mulheres. Este é um detalhe
onde, realmente, me tornei obsessivo, assim como todos
os jornalistas estrangeiros que estavam ali no Pasquitão,
em maior ou menor grau, evidentemente. Muitos entraram
pelo norte do país, do lado da Aliança do
Norte, que ali já estava controlado pelos militares
americanos, que prestavam assistência à organização,
mas também era uma área pertencente ao Afeganistão.
Mas a mim interessava entrar pelo lado dos taleban,
eu queria conhecer os taleban e conversar com
eles.
Z - O risco era de graça...
LS - O risco é um preço. Isto é
um dado importante: você atenua o risco com planejamento
e com contatos. Eu parti para o Afeganistão vendo
o que era preciso adequar, evidentemente. No caso, a entrada
pela fronteira, nem os três comerciantes podiam
conseguir a minha entrada porque é uma guarda tribal
que não obedece nem ao taleban. Um trecho
autônomo, que estava encarregado de não deixar
nenhum estrangeiro passar. Mas depois de dois dias de
tentativas nesse ponto, o Iqbal finalmente lançou
mão de m expediente do qual ele não queria
lançar, que era um parentesco familiar importante
ligado aos taleban.
Z
- Como assim, “lançou mão de um parentesco”?
LS - Eu não gosto muito de detalhar muito
esta história porque é uma dele e não
minha. Mas ele tem um parentesco muito influente, militar
de altíssima patente e que estava ali com os taleban.
Então quando ele falou o nome deste familiar, a
fronteira se abriu. Por que isto é muito delicado?
Primeiro porque o Iqbal vive em Islamabad, no Pasquitão,
cujo governo, naquele momento, estava em uma tensão
muito grande com o governo taleban. Então,
nessa circunstância, estar no Paquistão e
ter uma conexão deste tipo com o Afeganistão,
não era bom. E hoje em dia, é ao contrário.
Quer dizer, os taleban é que são
persona non grata de novo e eu não sei
o que aconteceu com esse militar, nas notícias,
o Iqbal não fala muito sobre isso, ele não
gostava muito de falar sobre isso.
Z - Quantos jornalistas brasileiros
você encontrou por lá?
LS - Havia o Kennedy de Alencar, da Folha,
que ficou baseado em Peshawar e que entrou com a Aliança
do Norte. A Folha tinha também em outro
colaborador, que ficava baseado em Lahor, no leste do
Pasquitão, mas esqueci o nome dele. Tinha o Marcelo
Spiners, se não me engano, que era um free-lancer
que cobria para a rede Bandeirantes de rádio e
televisão. O Pepe Escobar, meu amigo, que estava
pela Globo News, Época, pelo jornal O
Globo, depois chegou a Graziela, com quem trabalhei
na BBC, até cedi o Iqbal para ela um pouco.
Z - Quanto tempo você ficou
no Paquistão e qual a periodicidade das matérias
que você mandava aqui para o Brasil?
LS - Eu mandava o tempo todo, diariamente. Mais
de uma em média. Tinha muita coisa para falar,
porque, mesmo na fronteira, o material para explorar dessas
tribos era muito rico, além das histórias
dos afegãos que cruzavam a fronteira. Tive conversas
com a ajuda da polícia, com um capitão lá
da fronteira. Claro, ele tinha um valor. Eu dizia preciso
de afegãos “frescos” (afegãos
recém-chegados do Afeganistão) para conversar
sobre a situação dentro do país e
sobre seus sentimentos, principalmente com relação
aos taleban, Estados Unidos e ao Paquistão.
Z
- Foram matérias mais “humanas”, então?
LS - Sem dúvida, totalmente. Num primeiro
estágio, as conversas foram muito rasas, sobre
o que eram os sentimentos básicos, tipo: “vocês
vão defender o seu país?”. “Sim,
vamos, é lógico”, respondiam. Eu percebi
que essas perguntas os colocavam muito na defensiva e
não aprofundavam as questões. Então,
na segunda e terceira semanas, eu chegava e dizia: “eu
já sei que quando o seu país está
sob ameaça, sua reação natural é
defender esse país. Esquece os Estados Unidos.
Vamos falar sobre taleban. Como você tem
se sentido nos últimos seis anos? Eu sei também
que vocês são muitos religiosos...”
então as conversas se aprofundavam e ficavam muito
interessantes, porque eles iam relaxando. Tinha uma cabana
lá onde a gente conversava. O motorista e o policial
iam trazendo os afegãos. Era uma coisa em série,
o Iqbal e eu conversando. O Iqbal já era craque
em transmitir a coisa de maneira respeitosa, em deixar
a pessoa à vontade para falar como se estivesse
pensando em voz alta, como se estivesse na cozinha delas,
e não se declarando para imprensa ocidental, porque
isso não interessa.
Z - Como foi entrevistar pessoas
que estão sob forte tensão, tanto dos Estados
Unidos quanto do próprio taleban?
LS - O recurso que eu uso é mais conversar
do que entrevistar. Falo bastante de mim também,
de quem sou, que tenho filhos, a minha história,
o meu povo. O Iqbal também falava. O Iqbal e eu
tínhamos uma sintonia muito grande, ele entrou
muito bem nessa minha intenção. A gente
trabalhou muito bem, como acontece em muitos outros lugares
que vou, onde encontro pessoas assim. A idéia é
essa: você realmente bater papo, e aí, gerar
discussões entre eles para que esqueçam
que você está lá. O ideal é
você estar ausente porque sua presença atrapalha.
O importante é desarmar as pessoas, sua presença
inicialmente as coloca na defensiva, vão falando
coisas que não são exatamente o que pensam
e sentem. Para isso é que tem essa camada, essa
capa que você tem que retirar, e para isso você
tem que bater papo, tem que ter tempo, disposição.
Disposição nem é tanto a questão
porque você está tão curioso, você
quer tanto isso, que disponibiliza todo o tempo do mundo.
Até a conversa vai e volta, vai e volta e outra
pessoa interrompe e fala, e “ah, mas então
isso”. Você anota muitas coisas até
chegar no ponto em que se tem uma frase essencial, uma
coisa realmente define o sentimento ali. É um trabalho
difícil e longo.
Z
- O que os afegãos achavam da situação
que estavam vivendo? Qual a visão que eles tinham
sobre o atentado do Word Trade Center, sobre a presença
americana no país deles?
LS - Inicialmente a resposta deles é que
não havia provas de que Osama Bin Laden tivesse
feito isso. Então eles concordavam com a linha
dos taleban de que “vocês apresentam
provas e a gente vê o que faz. A gente pode criar
um tribunal internacional com a presença de um
juiz muçulmano, porque um muçulmano só
pode ser julgado por outro muçulmano. E a gente
pode discutir, se achar que o tribunal é neutro,
pode ver a possibilidade de entregar Osama Bin Laden”.
Essa visão fazia sentido para os afegãos.
Agora, quando a conversa se aprofundava muito, eles muitas
vezes traíam uma admiração por aquilo
que Osama Bin Laden fez, porque realmente era algo extraordinário
o que aconteceu nos Estados Unidos. E se foi Osama Bin
Laden, realmente ele é o máximo. Muitas
vezes acontecia este tipo de raciocínio, daí
já é quando a pessoa está pensando
alto, sem pensar que está falando coisas comprometedoras.
Mas havia este sentimento. Osama Bin Laden era um homem
bastante admirado pela maioria das pessoas do Afeganistão,
havia um certo mito em torno dele, embora houvesse também
outro tipo de visão, mais politizada, de que a
Al Qaeda era um elemento estranho dentro do Afeganistão,
um grupo de bandoleiros, com uma agenda totalmente estranha
com os interesses do país, fazendo ataques mundo
afora. Os talebans, principalmente, não
tinham nenhuma opinião sobre os americanos. Politicamente,
eles não tinham nada contra os americanos, eles
queriam tomar o Afeganistão. Quem colocou em contato
os taleban com a Al Qaeda foi o Paquistão,
porque quando conquistaram território afegão,
entre 93 e 96, eles acabaram ocupando os campos de treinamento
da Al Qaeda, que treinavam para ações de
desestabilização dos regimes dos países
muçulmanos, incluindo a Caxemira - região
que o Paquistão disputa com a Índia. E isso
interessava ao Pasquistão. Então, o ministro
do interior do Paquistão e seus funcionários
procuraram os taleban e falaram “olha,
vocês destruam os territórios que são
campos de treinamento da Al Qaeda”. Foi assim que
o taleban encontrou a Al Qaeda. Tem artigo meu,
“Como os estudantes encontraram a base”, pode
ver no meu sítio, que explica esta história.
Isso é importante para mostrar a diferença
entre os taleban e a Al Qaeda e também
para mostrar como a intromissão de outros países
acaba trazendo conseqüências nefastas.
Z - A intromissão americana
deturpou muito o cenário?
LS - Toda essa história começou com
um disputa de influências sobre o Afeganistão
entre a União Soviética e os Estados Unidos.
Foi assim que o Afeganistão se transformou num
país de homens armados até os dentes. Porque
nos anos 70, a União Soviética estava procurando
projetar-se sobre o Afeganistão enviando técnicos,
cientistas e pessoas para as universidades. O Iqbal teve
professores soviéticos, estudou Economia na Universidade
de Cabul, nessa época. Então, os Estados
Unidos, alarmados com isso, começaram a incitar
os líderes tribais da fronteira e também
no interior do país, dizendo “vocês
vão deixar esses ateus tomarem seu país?
Vocês não vão fazer nada?”.
Incitaram dando armas, dinheiro. Compraram os chefes tribais,
além de incitá-los ideologicamente. Com
isso começou um conflito, tensão, e a União
Soviética invadiu o Afeganistão, em 1979.
Tinha havido um golpe pró-soviético em 77.
E aí os Estados Unidos lutaram indiretamente com
a União Soviética por intermédio
dos nativos. Vieram do mundo inteiro muçulmanos
mujahedin, que são esses combatentes da
liberdade que criaram a guerra santa. Quando eles conseguiram
expulsar os soviéticos, em 1989, eles só
tinham armas, mais nada. Com o país destruído,
formaram grupos que passaram a lutar entre si. O Afeganistão
ficou totalmente fragmentado, feudalizado, “libanizado”.
De novo esses países: “bom, e agora? Precisamos
reunificar e pacificar o Afeganistão”. Foi
quando os taleban surgiram como alternativa.
Houve interferência direta americana, mas houve
essa ação inicial da Arábia Saudita
de financiar esses madrassas, escola religiosa
para ensinar essa seita. E ao Paquistão, interessava
muito diretamente, criar o Afeganistão. Primeiro,
pacificar e unificar. Em segundo lugar, criar no Afeganistão
um governo amigável, porque o grande problema do
Paquistão é que de um lado ele tem a Índia,
que é um país hostil; do outro, o Irã,
que nunca será um país amigo, porque o Paquistão
é sunita e o Irã é xiita. E não
queria outra nação inimiga. O Paquistão
consultou os taleban, falou que tinha um projeto,
deu armas aos taleban, treinamentos rápidos
pit stops no caminho das madrassas para
o Afeganistão. Eram estudantes, jovens de 18, 17
anos de idade, indo para um país com um Corão
na mão e um fuzil Kalashnikov na outra, que nem
sabiam manejar muito bem, mas cheios de heroísmo
porque qualquer destino seria melhor para eles, e lhes
daria glória eterna. Muitos atos de heroísmo
aconteceram, porque nessa época, os mujahedins
estavam fazendo muitas atrocidades contra a população
local. Havia saques, estupros, uso de drogas.
Z
- Na época em que você esteve no Afeganistão,
a população era conivente com os taleban
ou vivia com medo deles?
LS - Os taleban chegaram como uma benção
para os afegãos, porque pacificaram e unificaram
o país. Os veículos trafegavam nessa época
e o Senhores da Guerra (mujahedin) cobravam pedágios,
deixavam ou não deixavam passar. Mais 15 quilômetros
e tinha outro. O país estava totalmente inviável.
Os taleban tiveram atos heróicos, o Mohamad
Omar, supremo líder dos taleban, se tornou
isso, porque teve a iniciativa de reunir 16 rapazes e
libertar uma garota que ia ser violentada por um mujahedin.
Depois mataram o rapaz. Essa história e outras
se espalharam pelo Afeganistão, e os afegãos
estavam cansados de lutar. Então os taleban
entraram e conquistaram 90%, 95% do país, em dois,
três anos. Inicialmente eles foram uma benção
para os afegãos, mas depois revelaram seu lado
sombrio, desconhecido. Seguiam uma seita completamente
conhecida pelo Afeganistão, um país altamente
religioso, mas ortodoxo e não essa heterodoxia
maluca de não permitir televisão, música,
dança, diversão, esportes - até a
pipa era proibida. Era proibido se divertir no Afeganistão.
Quando fiquei sabendo disso, quase chorei, porque pipa
era meu brinquedo preferido quando era pequeno. Quando
entrei no Afeganistão não se viam crianças
nem mulheres, porque os meninos estavam na escola, passavam
o dia inteiro nas madrassas, e as meninas estavam
confinadas ao espaço doméstico com as mulheres.
Isso foi um preço muito alto que os afegãos
pagaram, porque eles tiveram que abrir mão de suas
diversões. Eles são muito tribais. E o que
é uma tribo? Os afegãos casam entre si,
casamento arranjado, quando você nasce já
sabe com quem vai casar. Os casamentos formam grandes
famílias, que são clãs, e conjuntos
de clãs são tribos, todos com o mesmo sobrenome.
O Iqbal é da tribo Afridi. Então essas tribos
têm suas danças, seus costumes. Os afegãos
são muito alegres, têm umas danças
muito engraçadas e um esporte absurdamente maluco
que é o buzkashi, uma mistura de rugby
com pólo. Formam-se dois grandes times de cavaleiros,
colocam no meio uma carcaça de um animal com a
cabeça decepada, que pode ser ovelha ou bode. Normalmente
é um bode, o campo é enorme, e eles correm
para pegar o animal e para cruzar para o outro lado. São
dezenas, às vezes mais de cem cavaleiros para cada
lado. Vai sendo dilacerada aquela carcaça de animal,
um toma do outro, até atravessar para o outro lado.
Cada partida é um animal. Antigamente era um homem
decepado. Depois, com a modernização do
Afeganistão, entre os séculos XVIII e XIX,
foi proibido. E os taleban mantiveram a proibição.
Os afegãos não tinham o que fazer. Rádio,
era rádio oficial que transmitia só oração
e notícias que os taleban queriam que
fossem difundidas, O jornalzinho tablóide que vi
lá não tinha imagens.
Z - Qual o tratamento que era dado
para a informação no Afeganistão
e no Paquistão? Havia cerceamento?
LS - No Afeganistão a liberdade de expressão
era totalmente cerceada. Só saía o que era
oficial. Os taleban, só quando começou
a crise, instalaram no quartel-general deles, em Kandahar,
uma antena parabólica para verem o que a imprensa
mundial estava falando. “Parece que estão
falando da gente, lá” (risos). Aí,
viram a Al Jazeera, além de verem a CNN, a BBC
e tal. Gostaram da Al Jazeera e convidaram um jornalista
da emissora, que ficava no Catar, para ir lá e
instalar o cabo de transmissão, mas só para
o resto do mundo e não para os afegãos,
que não podiam ver televisão. No Paquistão
é uma situação totalmente diferente,
o mercado é mais disputado, mais livre para a imprensa.
O momento era de grande emocionalismo dos dois lados.
Do lado de cá também, quando eu voltei,
eu que respirei o after lá, de 11 de setembro
à 10 de outubro, quando voltei fiquei chocado com
a cobertura do lado de cá também, com as
versões que faziam, as conclusões tiradas...
Deixa eu te contar uma rápida história:
uma vez saiu no jornal de lá que no dia 11 de setembro,
os quatro mil judeus que trabalhavam no World Trade Center
não tinham ido trabalhar, para induzir você
a pensar que podia ter sido obra do serviço secreto
israelense, porque judeu não pode matar outro judeu.
Eu fui atrás dessa história e os jornais
disseram que tinham sido duas agências islâmicas
que havia lá no Paquistão, uma daquelas
sunita, em Islamabad, que tinham enviado esse despacho.
Eu as procurei e disseram que isso vinha da mídia
canadense. Procurei o alto comissariado do Candá
em Islamabad, que fez um rastreamento disso na imprensa
canadense e obviamente não encontrou nada porque
a história era estapafúrdia. Não
se guarda segredo com quatro mil pessoas, você consegue
isso com duas. Você me conta isso e eu vou contar
pra ela que é minha amiga, minha mulher ou minha
namorada, não quero que ela morra, mesmo não
sendo judia, e o segredo vai embora. Bom, dias depois,
na semana seguinte, eu estava numa madrassa,
escola religiosa onde os taleban se formam, e
ouvi o diretor repetir essa história para um bando
de jornalistas. Eu estava com um colega egípcio
e contei para ele a história que eu acabei de contar.
No Egito há um destroncamento da mídia islâmica
e árabe, e lá, no mundo árabe deles,
circulou essa notícia. Havia muito disso, muita
suspeita. Eu entrevistei um juiz da alta corte de Peshawar,
da província da fronteira noroeste, que seria o
equivalente ao Superior Tribunal de Justiça Regional.
E ele disse que não tinha sido destruído
o World Trade Center, que tinha sido um truque de Hollywood,
uma mentira. Outros nomes de altíssimo nível
intelectual, diziam que estavam convencidos de que tinham
sido os americanos mesmo que tinham feito aquilo. Diziam
que não tinha morrido ninguém, que era tudo
uma farsa, que aqueles destroços e corpos que apareciam
na televisão era tudo mentira.
Z-
Mas chegou a ter algum controle sobre a informação?
LS - Não. Em Israel há. Em Islamabad,
não.
Z - Qual a imagem que mais impressionou
você no Afeganistão e por quê?
LS - A imagem é a dos pais de família
zigue-zagueando, às vezes em sentido contrário,
um indo e outro voltando, procurando uma saída,
tentando cruzar as fronteiras.
Z - Os taleban não
deixavam sair também?
LS - Não. Eu estive lá seis dias
antes de começar o bombardeio americano. Esses
pais de família, procurando um abrigo para os seus
filhos, duzentos, trezentos, procurando uma saída,
sem comida - porque a ONU, a Cruz Vermelha não
estavam mais atuando lá, ou funcionavam só
as sedes locais, mas precariamente. Meu filho, Pedro,
tem dois anos e minha mulher estava grávida de
seis meses, então eu me identificava com esses
pais. Quando caiu o World Trade Center, essa senhora aqui
e esse rapaz da sombra aqui [Lourival mostra foto de Rita
Lasar e do rapaz] tiveram parentes que morreram no World
Trade Center, porque haviam afegãos trabalhando
lá, assim como havia gente do mundo inteiro, havia
brasileiros, paquistaneses. E quando houve o bombardeio
americano, eles também tiveram parentes mortos
no Afeganistão. Essa é a história
das pessoas comuns, que não tomaram nenhuma decisão
a respeito da política externa americana, e nem
afegã. Não decidiram que o Afeganistão
deveria abrigar a Al Qaeda ou que os Estados Unidos deveriam
se meter na vida do Afeganistão ou com a União
Soviética ou com o Paquistão. Ou seja, são
pessoas comuns que vivem por lá e que são
os que pagam o preço. Pela conta de uma ONG chamada
World Exchange, morreram 815 pessoas. Pelas contas
do Pentágono morreram 400. No World Trade Center
morreram mais de 3 mil. Todas foram pessoas comuns
que nunca tomaram nenhuma decisão política
sobre essas coisas. A operação aérea
esgota o risco para o alvo, o atacado, porque não
havia artilharia anti-aérea afegã capaz
de derrubar o tipo de avião americano que estava
sobrevoando o país. Portanto, o risco é
certo, a não ser que o risco operacional, como
amigos, porque os americanos gostam tanto de atirar que
às vezes matam até corpo amigo. O risco
é muito maior para o alvo, para os civis que estão
lá embaixo porque a precisão é muito
limitada, é olhar para uma cruz vermelha e achar
que aquilo é um alvo, como se fosse um vídeo-game,
mas aquilo é uma tenda da Cruz Vermelha Internacional.
Não nos cabe aqui também demonizar os americanos.
Não existem maus, nem bons. O certo é mostrar
os dois lados para que o leitor tire as suas conclusões.
Z - Você trabalha no jornal
O Estado de São Paulo, que é um
jornal extremamente conservador. Mostrar todos os lados
não encontra resistência da diretoria?
LS - O prefácio do meu livro foi feito pelo
Ruy Mesquita. (Risos) Não, porque os donos do jornal
são uma família de jornalistas. Eles sabem
reconhecer uma grande reportagem. É óbvio
que para você reverter a expectativa, é natural
que você se sustente, você tem que estar muito
bem fundamentado. Cada palavra tem que ser escolhida e
editada.
Ginny Carla Morais
Afeganistão
originalmente significa “terra dos desordeiros,
dos livres, dos rebeldes ou da insolência”.
São curiosidades como essa que preenchem as 247
páginas do livro Viagem ao mundo dos taleban,
de Lourival Sant’Anna. O repórter do jornal
O Estado de São Paulo foi um dos poucos
jornalistas a entrar no Afeganistão dias após
o atentado de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque.
O livro, escrito em primeira pessoa, é de leitura
fácil e rápida. A narrativa funciona como
um diário, dividindo a aventura do jornalista em
cidades pelas quais passou. A linguagem é descontraída
e o relato é fundamentado com explicações
sobre tudo: a história, o cotidiano, os conflitos,
os significados das palavras, as religiões e culturas.
O leitor é envolvido pela grande quantidade de
informações, que poderiam ter passado despercebidas
caso não tivessem sido notadas pelos olhares atentos
de um jornalista que visitava a região pela primeira
vez. São esses dados, que poderiam parecer banais,
como o significado de taleban, que em uma das línguas
do Paquistão, quer dizer estudantes, que aguçam
a curiosidade e que contextualizam a história.
Viagem ao mundo dos taleban (R$ 25) faz parte da coleção
Vida de Repórter, lançada em julho pela
Geração Editorial.