Número 3 - Ano I - Edição fechada em 13 de Dezembro de 2002 Florianópolis-SC
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Lourival Sant’Anna foi o primeiro jornalista brasileiro a entrar no Afeganistão depois do atentado terrorista aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. Nesta entrevista ao Zero, o jornalista conta a sua experiência nesta região conturbada, onde todos os afegãos tinham ordem de matar qualquer estrangeiro que vissem ao país. Sendo sua primeira vez no Afeganistão, o repórter dá uma visão clara dos costumes da região, dos conceitos de guerra santa, dos perigos e nuances de um correspondente de guerra. Faz um resumo da cobertura jornalística que fez para o diário O Estado de São Paulo, que se transformou no livro Viagem ao mundo dos taleban, onde explica as origens dos conflitos entre os países muçulmanos e o interesse estratégico dos Estados Unidos na região. Os temas como o homossexualismo, freqüente no movimento do taleban,e a forma como os combatentes conseguiram dinheiro, armas e força para dominar 90%do território do Afeganistão.

Zero - Como foi sua experiência no Afeganistão? Como você chegou lá?
Lourival Sant’Anna
- Bom, eu saí do Brasil algumas horas depois do atentado e fui para Israel. A gente não sabia muito bem a origem daquilo, mas desconfiava que tinha alguma a ver com o terrorismo islâmico. Então, fiquei cinco dias com os palestinos e os israelenses, conversando sobre o terrorismo islâmico, até que se consolidou a hipótese do Afeganistão. No dia 18 de setembro, cheguei no Paquistão. O Afeganistão estava fechado e fiquei em Islamabad. Na manhã desse dia, conheci o Iqbal Afridi, que é esta figura aqui. Ele, depois de ter trabalhado no serviço secreto paquistanês e na linha aérea paquistanesa, abriu uma locadora de automóveis instalada no hotel onde me hospedei. Eu precisava de um carro que me levasse aos lugares, a gente começou a conversar e houve uma simpatia mútua. Eu não tinha idéia do quanto ele era importante, isso foi se revelando aos poucos, mas ele gostou de mim, e eu gostei dele, e ao invés de ele alugar um carro, passou a trabalhar para mim, como guia e intérprete, acima de tudo. Depois a gente passou a ter um motorista.

Sant'anna e Iqbal, que além de guia, intérprete e motorista o colocou em contato com os talebans / Foto: arquivo pessoalZ - Qual idioma você usou?
LS
- Inglês. A grande importância do Iqbal, em primeiro lugar, era porque ele é afegão, e fala o pashtu, dialeto que é falado no Centro-sul do Afeganistão, coisa que muita gente em Islamabad e a maioria dos paquistaneses não falam. Além do pashtu, fala urdu, que é a língua administrativa do Paquistão, que também é importante já que estávamos no Paquistão, e mais o inglês. Ele tem três mulheres e uma delas é australiana. Ele morou na Austrália e na Holanda. Bom, este é o primeiro aspecto do meu guia. O Iqbal é toda uma história, daria um livro só sobre o Iqbal (risos). E segundo, é que ele é homem cheio de conexões e muito bem informado, com uma influente no Afeganistão e no Paquistão, então, através dele, nós chegamos às pessoas que puderam nos levar até os taleban.

Z - Quantas vezes você tentou entrar no Afeganistão e não conseguiu?
LS
- Inúmeras. Ficamos três semanas tentando, praticamente todos os dias, várias vezes por dia, ao longo de uma fronteira de 2.500 quilômetros. Eu sempre me baseava muito em Islamabad porque ali estavam as informações da ONU, da Cruz Vermelha, das organizações humanitárias. Havia briefings diários do governo paquistanês e também do único canal que existia entre os taleban e o mundo, que era a embaixada deles em Islamabad. Tudo ficava em Islamabad. Então eu ficava com um pé em Islamabad e outro pé na fronteira. A fronteira era muito importante porque ali chegavam afegãos. Tinha uma área tribal ao longo da fronteira do Paquistão e Afeganistão, viviam ali 20 tribos afegãs. Além disso por ali passavam migrantes afegãos vindos do Afeganistão.

Z - Como foi para você, que não conhecia a língua nem os costumes locais, lidar com uma diferença étnica tão grande?
LS
- Primeiro, a premissa intelectual é o relativismo cultural. Você chega muito respeitoso, tentando aprender, lendo à noite, e felizmente, no Paquistão existem muitos livros em inglês, porque o país foi colônia britânica - o Afeganistão não - , mas existem muitos livros sobre o Afeganistão. O embaixador do Brasil em Islamabad foi quem me deu a primeira aula de Afeganistão. Ele é historiador, um homem muito culto, estava lá há cinco anos, me deu uma aula e indicou rumos. Então passei a estudar. Além disso, você tem que ter uma postura intelectual e de muita humildade, perceber coisas, observar e imitar - como uma criança. O Iqbal e outras pessoas iam me ensinando as coisas, então eu não cometia muitas gafes, e quando cometia, as pessoas me perdoavam porque não me mostrava petulante. É um momento de muito emocionalismo, de choque de civilizações. E eu vinha do lado errado.

Z - Como foi a travessia da fronteira? Quando você entrou no Afeganistão, você sabia aonde ir, quem procurar?
LS
- Sabia. Eu estava acompanhado do Iqbal e mais três comerciantes da região, que faziam comércio com os taleban e estavam guiando em jipe. Éramos cinco. Eu não podia entrar no Afeganistão. Havia uma ordem, um decreto dos taleban, para a população matar qualquer estrangeiro que visse dentro no país. Todos os estrangeiros tinham sido expulsos. Havia uma jornalista inglesa presa pelo regime. Então, eu sempre disse para o Iqbal que queria entrar e ir direto até os taleban, antes que eles me encontrassem. Essa foi uma premissa que a gente pode discutir, porque é uma questão de ética. Então fomos até o quartel-general dos taleban, em Spin Boldak, que é uma cidade no sul do Afeganistão, distante 103 quilômetros ao sul de Kandahar, que era seu quartel-general e da Al Qaeda. O quartel-general em Spin Boldak, era sede de um governo regional dos taleban e chegando lá o dono do jipe, que era o comerciante mais importante, desceu e falou “eu tenho um jornalista brasileiro maluco aqui que quer conversar com vocês”. O soldado retrucou: “bom, já que ele está aqui, então vamos ver o que ele quer”. Nós todos entramos e tinha três governantes locais: um militar, dois civis e mais adiante, entrou um mujahedin, um veterano combatente da liberdade, anterior aos taleban, e que participou da manifestação para a expulsão dos soviéticos, entre 79 e 89. Esse homem, tinha sido, fui saber depois, governador da província de Kandahar e fez um acordo com os taleban, entregando a província para eles. Quando a Aliança do Norte avançou em relação ao sul, sobre o tapete de bombas americanas, esse homem, que se chama Gul Agha, passou a liderar a resistência contra os taleban e hoje reassumiu o cargo de governador da província de Kandahar. O Iqbal esteve lá de novo e ele falou: “Chama seu amigo para vir aqui para a gente conversar mais”. A experiência dele foi muito boa porque chegou a prolongar a entrevista. Os taleban não estavam querendo facilitar, estavam muito nervosos por eu estar lá, achavam uma esculhambação eu estar sendo recebido daquela maneira. A hospitalidade é um fator muito importante na cultura deles. Uma vez que você esteve lá, deve ser bem recebido. A idéia é não deixar entrar.

O país vive conflitos internos e externos permanentes há mais de 20 anos, mas o longo deserto à frente dos refugiados não impede que eles sonhem encontrar um lugar pacificado / Foto: James Hill - NYTZ - Que perguntas você fez?
LS
- Eu já vinha lendo muitas coberturas de jornal, então eu fiz perguntas mais profundas, sobre a visão deles de mundo. Por que eles achavam que a religião podia reger todos os aspectos da vida e do governo; por que não realizam eleições? Se diziam que a população estava contente; como eles viam o futuro, o conflito com os Estados Unidos? E, claro, a visão que tinham do Osama Bin Laden. Foram perguntas mais aprofundadas, as coisas básicas que não estavam mastigadas naquele momento. Eles também me disseram coisas espontaneamente e, no final, rezaram para eu me converter ao islamismo.

Z - Está convertido?
LS
- (Risos) Não, não. Foi uma conversa cheia de climas, cheia de trocas. Teve também uma discussão sobre a jihad, que era uma discussão que eu vinha levando com os líderes religiosos e os professores do taleban que encontrei antes, diretores de escolas religiosas onde eles estudaram. Eu estava muito intrigado de como a religião poderia justificar, ou servir, ou ser usada para justificar um atentado como o World Trade Center. Então, o que significava guerra santa, jihad? Eu estava tentando mastigar esse conceito, comparar com o cristianismo também. Eram discussões assim.

Z - Quanto tempo você permaneceu no Afeganistão?
LS
- Algumas horas. Não podia ficar lá nem falar com ninguém. Eu entrei totalmente mudo, vestido de afegão, e realmente eu não estava lá, para todos os efeitos. Claro, tiramos fotos, mas não do taleban, não podia. Fiz anotações discretas. Estava sem óculos, só esqueci o relógio, não devia estar nem de relógio porque eu não devia ser reconhecido como um estrangeiro. Mas nós descemos do jipe dentro de um pátio, bem além destas tendas do taleban, de um comerciante que fazia negócio com esses três homens que estavam me acompanhando. Lá a gente pôde ficar conversando um pouco, mas logo chegaram uns sujeitos estranhos, na verdade o estranho lá era eu, e o Iqbal gritou “ taleban”. Ai todo mundo entrou no jipe e nós demos umas volta no sul do Afeganistão, até que ele disseram “olha, vamos voltar, não dá mais para a gente ficar arriscando” . Então a gente voltou e foi um momento de tristeza para mim.

Z - O que move um jornalista a fazer esse tipo de cobertura, sabendo que pode morrer, como no caso do Daniel Pearl ?
LS
- É a curiosidade, no meu caso. É porque eu sabia que os taleban são pessoas que nunca existiram e nunca vão voltar a existir. Um bando de seminaristas, estudantes de religião, órfãos de uma guerra, da guerra dos anos 80, que cresceram em um campo de refugiados e depois viveram nos braços das escolas religiosas, onde eles aprenderam uma visão do Corão muito peculiar, que é a seita wahabica, originária da Arábia Saudita no séc. XVIII, e que, até hoje, a Arábia Saudita fomenta nesses países. Eles têm uma utopia islâmica de resgatar o islamismo puro, livre da influência de qualquer religião. Daí a destruição e intolerância com qualquer religião. Viveram a vida no ambiente do monastério das escolas religiosas e de repente se transformaram em um grande braço armado do Islã, tomam o país e procuram colocar em prática estes conceitos. Mas eles tinham uma experiência limitada de vida, por exemplo, eles não tinham nem contato com mulheres, e muitos não sabiam o que fazer com as mulheres. Este é um detalhe onde, realmente, me tornei obsessivo, assim como todos os jornalistas estrangeiros que estavam ali no Pasquitão, em maior ou menor grau, evidentemente. Muitos entraram pelo norte do país, do lado da Aliança do Norte, que ali já estava controlado pelos militares americanos, que prestavam assistência à organização, mas também era uma área pertencente ao Afeganistão. Mas a mim interessava entrar pelo lado dos taleban, eu queria conhecer os taleban e conversar com eles.

Z - O risco era de graça...
LS
- O risco é um preço. Isto é um dado importante: você atenua o risco com planejamento e com contatos. Eu parti para o Afeganistão vendo o que era preciso adequar, evidentemente. No caso, a entrada pela fronteira, nem os três comerciantes podiam conseguir a minha entrada porque é uma guarda tribal que não obedece nem ao taleban. Um trecho autônomo, que estava encarregado de não deixar nenhum estrangeiro passar. Mas depois de dois dias de tentativas nesse ponto, o Iqbal finalmente lançou mão de m expediente do qual ele não queria lançar, que era um parentesco familiar importante ligado aos taleban.

Pai e filha: refugiados do norte do Afeganistão / Foto: James Hill - NYTZ - Como assim, “lançou mão de um parentesco”?
LS
- Eu não gosto muito de detalhar muito esta história porque é uma dele e não minha. Mas ele tem um parentesco muito influente, militar de altíssima patente e que estava ali com os taleban. Então quando ele falou o nome deste familiar, a fronteira se abriu. Por que isto é muito delicado? Primeiro porque o Iqbal vive em Islamabad, no Pasquitão, cujo governo, naquele momento, estava em uma tensão muito grande com o governo taleban. Então, nessa circunstância, estar no Paquistão e ter uma conexão deste tipo com o Afeganistão, não era bom. E hoje em dia, é ao contrário. Quer dizer, os taleban é que são persona non grata de novo e eu não sei o que aconteceu com esse militar, nas notícias, o Iqbal não fala muito sobre isso, ele não gostava muito de falar sobre isso.

Z - Quantos jornalistas brasileiros você encontrou por lá?
LS
- Havia o Kennedy de Alencar, da Folha, que ficou baseado em Peshawar e que entrou com a Aliança do Norte. A Folha tinha também em outro colaborador, que ficava baseado em Lahor, no leste do Pasquitão, mas esqueci o nome dele. Tinha o Marcelo Spiners, se não me engano, que era um free-lancer que cobria para a rede Bandeirantes de rádio e televisão. O Pepe Escobar, meu amigo, que estava pela Globo News, Época, pelo jornal O Globo, depois chegou a Graziela, com quem trabalhei na BBC, até cedi o Iqbal para ela um pouco.

Z - Quanto tempo você ficou no Paquistão e qual a periodicidade das matérias que você mandava aqui para o Brasil?
LS
- Eu mandava o tempo todo, diariamente. Mais de uma em média. Tinha muita coisa para falar, porque, mesmo na fronteira, o material para explorar dessas tribos era muito rico, além das histórias dos afegãos que cruzavam a fronteira. Tive conversas com a ajuda da polícia, com um capitão lá da fronteira. Claro, ele tinha um valor. Eu dizia preciso de afegãos “frescos” (afegãos recém-chegados do Afeganistão) para conversar sobre a situação dentro do país e sobre seus sentimentos, principalmente com relação aos taleban, Estados Unidos e ao Paquistão.

Confraternização depois do retorno à cidade de Chaman / Foto: arquivo pessoalZ - Foram matérias mais “humanas”, então?
LS
- Sem dúvida, totalmente. Num primeiro estágio, as conversas foram muito rasas, sobre o que eram os sentimentos básicos, tipo: “vocês vão defender o seu país?”. “Sim, vamos, é lógico”, respondiam. Eu percebi que essas perguntas os colocavam muito na defensiva e não aprofundavam as questões. Então, na segunda e terceira semanas, eu chegava e dizia: “eu já sei que quando o seu país está sob ameaça, sua reação natural é defender esse país. Esquece os Estados Unidos. Vamos falar sobre taleban. Como você tem se sentido nos últimos seis anos? Eu sei também que vocês são muitos religiosos...” então as conversas se aprofundavam e ficavam muito interessantes, porque eles iam relaxando. Tinha uma cabana lá onde a gente conversava. O motorista e o policial iam trazendo os afegãos. Era uma coisa em série, o Iqbal e eu conversando. O Iqbal já era craque em transmitir a coisa de maneira respeitosa, em deixar a pessoa à vontade para falar como se estivesse pensando em voz alta, como se estivesse na cozinha delas, e não se declarando para imprensa ocidental, porque isso não interessa.

Z - Como foi entrevistar pessoas que estão sob forte tensão, tanto dos Estados Unidos quanto do próprio taleban?
LS
- O recurso que eu uso é mais conversar do que entrevistar. Falo bastante de mim também, de quem sou, que tenho filhos, a minha história, o meu povo. O Iqbal também falava. O Iqbal e eu tínhamos uma sintonia muito grande, ele entrou muito bem nessa minha intenção. A gente trabalhou muito bem, como acontece em muitos outros lugares que vou, onde encontro pessoas assim. A idéia é essa: você realmente bater papo, e aí, gerar discussões entre eles para que esqueçam que você está lá. O ideal é você estar ausente porque sua presença atrapalha. O importante é desarmar as pessoas, sua presença inicialmente as coloca na defensiva, vão falando coisas que não são exatamente o que pensam e sentem. Para isso é que tem essa camada, essa capa que você tem que retirar, e para isso você tem que bater papo, tem que ter tempo, disposição. Disposição nem é tanto a questão porque você está tão curioso, você quer tanto isso, que disponibiliza todo o tempo do mundo. Até a conversa vai e volta, vai e volta e outra pessoa interrompe e fala, e “ah, mas então isso”. Você anota muitas coisas até chegar no ponto em que se tem uma frase essencial, uma coisa realmente define o sentimento ali. É um trabalho difícil e longo.

Buzkashi: esporte nacional afegão que só voltou a ser praticado depois da queda dos taleban / Foto: Chang W. Lee - NYTZ - O que os afegãos achavam da situação que estavam vivendo? Qual a visão que eles tinham sobre o atentado do Word Trade Center, sobre a presença americana no país deles?
LS
- Inicialmente a resposta deles é que não havia provas de que Osama Bin Laden tivesse feito isso. Então eles concordavam com a linha dos taleban de que “vocês apresentam provas e a gente vê o que faz. A gente pode criar um tribunal internacional com a presença de um juiz muçulmano, porque um muçulmano só pode ser julgado por outro muçulmano. E a gente pode discutir, se achar que o tribunal é neutro, pode ver a possibilidade de entregar Osama Bin Laden”. Essa visão fazia sentido para os afegãos. Agora, quando a conversa se aprofundava muito, eles muitas vezes traíam uma admiração por aquilo que Osama Bin Laden fez, porque realmente era algo extraordinário o que aconteceu nos Estados Unidos. E se foi Osama Bin Laden, realmente ele é o máximo. Muitas vezes acontecia este tipo de raciocínio, daí já é quando a pessoa está pensando alto, sem pensar que está falando coisas comprometedoras. Mas havia este sentimento. Osama Bin Laden era um homem bastante admirado pela maioria das pessoas do Afeganistão, havia um certo mito em torno dele, embora houvesse também outro tipo de visão, mais politizada, de que a Al Qaeda era um elemento estranho dentro do Afeganistão, um grupo de bandoleiros, com uma agenda totalmente estranha com os interesses do país, fazendo ataques mundo afora. Os talebans, principalmente, não tinham nenhuma opinião sobre os americanos. Politicamente, eles não tinham nada contra os americanos, eles queriam tomar o Afeganistão. Quem colocou em contato os taleban com a Al Qaeda foi o Paquistão, porque quando conquistaram território afegão, entre 93 e 96, eles acabaram ocupando os campos de treinamento da Al Qaeda, que treinavam para ações de desestabilização dos regimes dos países muçulmanos, incluindo a Caxemira - região que o Paquistão disputa com a Índia. E isso interessava ao Pasquistão. Então, o ministro do interior do Paquistão e seus funcionários procuraram os taleban e falaram “olha, vocês destruam os territórios que são campos de treinamento da Al Qaeda”. Foi assim que o taleban encontrou a Al Qaeda. Tem artigo meu, “Como os estudantes encontraram a base”, pode ver no meu sítio, que explica esta história. Isso é importante para mostrar a diferença entre os taleban e a Al Qaeda e também para mostrar como a intromissão de outros países acaba trazendo conseqüências nefastas.

Z - A intromissão americana deturpou muito o cenário?
LS
- Toda essa história começou com um disputa de influências sobre o Afeganistão entre a União Soviética e os Estados Unidos. Foi assim que o Afeganistão se transformou num país de homens armados até os dentes. Porque nos anos 70, a União Soviética estava procurando projetar-se sobre o Afeganistão enviando técnicos, cientistas e pessoas para as universidades. O Iqbal teve professores soviéticos, estudou Economia na Universidade de Cabul, nessa época. Então, os Estados Unidos, alarmados com isso, começaram a incitar os líderes tribais da fronteira e também no interior do país, dizendo “vocês vão deixar esses ateus tomarem seu país? Vocês não vão fazer nada?”. Incitaram dando armas, dinheiro. Compraram os chefes tribais, além de incitá-los ideologicamente. Com isso começou um conflito, tensão, e a União Soviética invadiu o Afeganistão, em 1979. Tinha havido um golpe pró-soviético em 77. E aí os Estados Unidos lutaram indiretamente com a União Soviética por intermédio dos nativos. Vieram do mundo inteiro muçulmanos mujahedin, que são esses combatentes da liberdade que criaram a guerra santa. Quando eles conseguiram expulsar os soviéticos, em 1989, eles só tinham armas, mais nada. Com o país destruído, formaram grupos que passaram a lutar entre si. O Afeganistão ficou totalmente fragmentado, feudalizado, “libanizado”. De novo esses países: “bom, e agora? Precisamos reunificar e pacificar o Afeganistão”. Foi quando os taleban surgiram como alternativa. Houve interferência direta americana, mas houve essa ação inicial da Arábia Saudita de financiar esses madrassas, escola religiosa para ensinar essa seita. E ao Paquistão, interessava muito diretamente, criar o Afeganistão. Primeiro, pacificar e unificar. Em segundo lugar, criar no Afeganistão um governo amigável, porque o grande problema do Paquistão é que de um lado ele tem a Índia, que é um país hostil; do outro, o Irã, que nunca será um país amigo, porque o Paquistão é sunita e o Irã é xiita. E não queria outra nação inimiga. O Paquistão consultou os taleban, falou que tinha um projeto, deu armas aos taleban, treinamentos rápidos pit stops no caminho das madrassas para o Afeganistão. Eram estudantes, jovens de 18, 17 anos de idade, indo para um país com um Corão na mão e um fuzil Kalashnikov na outra, que nem sabiam manejar muito bem, mas cheios de heroísmo porque qualquer destino seria melhor para eles, e lhes daria glória eterna. Muitos atos de heroísmo aconteceram, porque nessa época, os mujahedins estavam fazendo muitas atrocidades contra a população local. Havia saques, estupros, uso de drogas.

Z - Na época em que você esteve no Afeganistão, a população era conivente com os taleban ou vivia com medo deles?
LS
- Os taleban chegaram como uma benção para os afegãos, porque pacificaram e unificaram o país. Os veículos trafegavam nessa época e o Senhores da Guerra (mujahedin) cobravam pedágios, deixavam ou não deixavam passar. Mais 15 quilômetros e tinha outro. O país estava totalmente inviável. Os taleban tiveram atos heróicos, o Mohamad Omar, supremo líder dos taleban, se tornou isso, porque teve a iniciativa de reunir 16 rapazes e libertar uma garota que ia ser violentada por um mujahedin. Depois mataram o rapaz. Essa história e outras se espalharam pelo Afeganistão, e os afegãos estavam cansados de lutar. Então os taleban entraram e conquistaram 90%, 95% do país, em dois, três anos. Inicialmente eles foram uma benção para os afegãos, mas depois revelaram seu lado sombrio, desconhecido. Seguiam uma seita completamente conhecida pelo Afeganistão, um país altamente religioso, mas ortodoxo e não essa heterodoxia maluca de não permitir televisão, música, dança, diversão, esportes - até a pipa era proibida. Era proibido se divertir no Afeganistão. Quando fiquei sabendo disso, quase chorei, porque pipa era meu brinquedo preferido quando era pequeno. Quando entrei no Afeganistão não se viam crianças nem mulheres, porque os meninos estavam na escola, passavam o dia inteiro nas madrassas, e as meninas estavam confinadas ao espaço doméstico com as mulheres. Isso foi um preço muito alto que os afegãos pagaram, porque eles tiveram que abrir mão de suas diversões. Eles são muito tribais. E o que é uma tribo? Os afegãos casam entre si, casamento arranjado, quando você nasce já sabe com quem vai casar. Os casamentos formam grandes famílias, que são clãs, e conjuntos de clãs são tribos, todos com o mesmo sobrenome. O Iqbal é da tribo Afridi. Então essas tribos têm suas danças, seus costumes. Os afegãos são muito alegres, têm umas danças muito engraçadas e um esporte absurdamente maluco que é o buzkashi, uma mistura de rugby com pólo. Formam-se dois grandes times de cavaleiros, colocam no meio uma carcaça de um animal com a cabeça decepada, que pode ser ovelha ou bode. Normalmente é um bode, o campo é enorme, e eles correm para pegar o animal e para cruzar para o outro lado. São dezenas, às vezes mais de cem cavaleiros para cada lado. Vai sendo dilacerada aquela carcaça de animal, um toma do outro, até atravessar para o outro lado. Cada partida é um animal. Antigamente era um homem decepado. Depois, com a modernização do Afeganistão, entre os séculos XVIII e XIX, foi proibido. E os taleban mantiveram a proibição. Os afegãos não tinham o que fazer. Rádio, era rádio oficial que transmitia só oração e notícias que os taleban queriam que fossem difundidas, O jornalzinho tablóide que vi lá não tinha imagens.

Z - Qual o tratamento que era dado para a informação no Afeganistão e no Paquistão? Havia cerceamento?
LS
- No Afeganistão a liberdade de expressão era totalmente cerceada. Só saía o que era oficial. Os taleban, só quando começou a crise, instalaram no quartel-general deles, em Kandahar, uma antena parabólica para verem o que a imprensa mundial estava falando. “Parece que estão falando da gente, lá” (risos). Aí, viram a Al Jazeera, além de verem a CNN, a BBC e tal. Gostaram da Al Jazeera e convidaram um jornalista da emissora, que ficava no Catar, para ir lá e instalar o cabo de transmissão, mas só para o resto do mundo e não para os afegãos, que não podiam ver televisão. No Paquistão é uma situação totalmente diferente, o mercado é mais disputado, mais livre para a imprensa. O momento era de grande emocionalismo dos dois lados. Do lado de cá também, quando eu voltei, eu que respirei o after lá, de 11 de setembro à 10 de outubro, quando voltei fiquei chocado com a cobertura do lado de cá também, com as versões que faziam, as conclusões tiradas... Deixa eu te contar uma rápida história: uma vez saiu no jornal de lá que no dia 11 de setembro, os quatro mil judeus que trabalhavam no World Trade Center não tinham ido trabalhar, para induzir você a pensar que podia ter sido obra do serviço secreto israelense, porque judeu não pode matar outro judeu. Eu fui atrás dessa história e os jornais disseram que tinham sido duas agências islâmicas que havia lá no Paquistão, uma daquelas sunita, em Islamabad, que tinham enviado esse despacho. Eu as procurei e disseram que isso vinha da mídia canadense. Procurei o alto comissariado do Candá em Islamabad, que fez um rastreamento disso na imprensa canadense e obviamente não encontrou nada porque a história era estapafúrdia. Não se guarda segredo com quatro mil pessoas, você consegue isso com duas. Você me conta isso e eu vou contar pra ela que é minha amiga, minha mulher ou minha namorada, não quero que ela morra, mesmo não sendo judia, e o segredo vai embora. Bom, dias depois, na semana seguinte, eu estava numa madrassa, escola religiosa onde os taleban se formam, e ouvi o diretor repetir essa história para um bando de jornalistas. Eu estava com um colega egípcio e contei para ele a história que eu acabei de contar. No Egito há um destroncamento da mídia islâmica e árabe, e lá, no mundo árabe deles, circulou essa notícia. Havia muito disso, muita suspeita. Eu entrevistei um juiz da alta corte de Peshawar, da província da fronteira noroeste, que seria o equivalente ao Superior Tribunal de Justiça Regional. E ele disse que não tinha sido destruído o World Trade Center, que tinha sido um truque de Hollywood, uma mentira. Outros nomes de altíssimo nível intelectual, diziam que estavam convencidos de que tinham sido os americanos mesmo que tinham feito aquilo. Diziam que não tinha morrido ninguém, que era tudo uma farsa, que aqueles destroços e corpos que apareciam na televisão era tudo mentira.

Samir ul-Haq, diretor de escola religiosa em Peshawar / Foto: Lourival Sant'anna - AEZ- Mas chegou a ter algum controle sobre a informação?
LS
- Não. Em Israel há. Em Islamabad, não.

Z - Qual a imagem que mais impressionou você no Afeganistão e por quê?
LS
- A imagem é a dos pais de família zigue-zagueando, às vezes em sentido contrário, um indo e outro voltando, procurando uma saída, tentando cruzar as fronteiras.

Z - Os taleban não deixavam sair também?
LS
- Não. Eu estive lá seis dias antes de começar o bombardeio americano. Esses pais de família, procurando um abrigo para os seus filhos, duzentos, trezentos, procurando uma saída, sem comida - porque a ONU, a Cruz Vermelha não estavam mais atuando lá, ou funcionavam só as sedes locais, mas precariamente. Meu filho, Pedro, tem dois anos e minha mulher estava grávida de seis meses, então eu me identificava com esses pais. Quando caiu o World Trade Center, essa senhora aqui e esse rapaz da sombra aqui [Lourival mostra foto de Rita Lasar e do rapaz] tiveram parentes que morreram no World Trade Center, porque haviam afegãos trabalhando lá, assim como havia gente do mundo inteiro, havia brasileiros, paquistaneses. E quando houve o bombardeio americano, eles também tiveram parentes mortos no Afeganistão. Essa é a história das pessoas comuns, que não tomaram nenhuma decisão a respeito da política externa americana, e nem afegã. Não decidiram que o Afeganistão deveria abrigar a Al Qaeda ou que os Estados Unidos deveriam se meter na vida do Afeganistão ou com a União Soviética ou com o Paquistão. Ou seja, são pessoas comuns que vivem por lá e que são os que pagam o preço. Pela conta de uma ONG chamada World Exchange, morreram 815 pessoas. Pelas contas do Pentágono morreram 400. No World Trade Center morreram mais de 3 mil. Todas foram pessoas comuns que nunca tomaram nenhuma decisão política sobre essas coisas. A operação aérea esgota o risco para o alvo, o atacado, porque não havia artilharia anti-aérea afegã capaz de derrubar o tipo de avião americano que estava sobrevoando o país. Portanto, o risco é certo, a não ser que o risco operacional, como amigos, porque os americanos gostam tanto de atirar que às vezes matam até corpo amigo. O risco é muito maior para o alvo, para os civis que estão lá embaixo porque a precisão é muito limitada, é olhar para uma cruz vermelha e achar que aquilo é um alvo, como se fosse um vídeo-game, mas aquilo é uma tenda da Cruz Vermelha Internacional. Não nos cabe aqui também demonizar os americanos. Não existem maus, nem bons. O certo é mostrar os dois lados para que o leitor tire as suas conclusões.

Z - Você trabalha no jornal O Estado de São Paulo, que é um jornal extremamente conservador. Mostrar todos os lados não encontra resistência da diretoria?
LS
- O prefácio do meu livro foi feito pelo Ruy Mesquita. (Risos) Não, porque os donos do jornal são uma família de jornalistas. Eles sabem reconhecer uma grande reportagem. É óbvio que para você reverter a expectativa, é natural que você se sustente, você tem que estar muito bem fundamentado. Cada palavra tem que ser escolhida e editada.

Ginny Carla Morais


Afeganistão originalmente significa “terra dos desordeiros, dos livres, dos rebeldes ou da insolência”. São curiosidades como essa que preenchem as 247 páginas do livro Viagem ao mundo dos taleban, de Lourival Sant’Anna. O repórter do jornal O Estado de São Paulo foi um dos poucos jornalistas a entrar no Afeganistão dias após o atentado de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque.

O livro, escrito em primeira pessoa, é de leitura fácil e rápida. A narrativa funciona como um diário, dividindo a aventura do jornalista em cidades pelas quais passou. A linguagem é descontraída e o relato é fundamentado com explicações sobre tudo: a história, o cotidiano, os conflitos, os significados das palavras, as religiões e culturas.

O leitor é envolvido pela grande quantidade de informações, que poderiam ter passado despercebidas caso não tivessem sido notadas pelos olhares atentos de um jornalista que visitava a região pela primeira vez. São esses dados, que poderiam parecer banais, como o significado de taleban, que em uma das línguas do Paquistão, quer dizer estudantes, que aguçam a curiosidade e que contextualizam a história.

Viagem ao mundo dos taleban (R$ 25) faz parte da coleção Vida de Repórter, lançada em julho pela Geração Editorial.
Ginny Carla Morais

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