Número 1 - Ano I - Edição fechada em 29 de Julho de 2002 Florianópolis-SC
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Mesmo com uma produção cinematográfica inexpressiva ao longo das últimas décadas, Santa Catarina esboça uma reação a essa letargia na criação de obras audiovisuais. São menos de cinco os longas-metragens concluídos até hoje no Estado. Os cineastas catarinenses de expressão nacional, como Rogério Sganzerla, de Joaçaba (autor do famoso filme O bandido da luz vermelha, de 1968), Ody Fraga, de Florianópolis e Sylvio Back, de Blumenau, saíram jovens do Estado e fizeram carreira fora dele. Para piorar, a rede exibidora é uma das mais pobres e monopolizadas do país. Em Florianópolis, por exemplo, só há sete salas comerciais de cinema - a oitava é um cineclube, o Bar Cine York. Em suma: poucos filmes, mercado de trabalho acanhado, cultura cinematográfica precária.

Zeca Pires e José Frazão instruem Cláudia LizA boa notícia é que a situação está mudando de maneira decisiva. No resto do país fala-se muito em “retomada” do cinema, enquanto em Santa Catarina, o termo mais adequado, talvez seja mesmo “nascimento”. O primeiro dado significativo é que estão sendo rodados ao mesmo tempo em Florianópolis dois longas-metragens: o documentário Vida e obra de Seo Chico, de José Rafael Mamigonian, e o policial Procuradas de José Frazão e Zeca Pires. Ambos tem em comum o baixo orçamento. Cada um deles deverá custar R$ 800 mil.

Fora isso não poderia haver dois filmes mais contrastantes. O primeiro é um documentário sobre o camponês Francisco Thomaz dos Santos, o “Seo Chico”, assassinado em 1996. Ele foi um mito na cidade, pois era o último representante de um modo de vida rural que está em extinção, o da produção dos engenhos de farinha e de cachaça na ilha de Santa Catarina. Já o filme Procuradas é um policial contemporâneo sobre garotas de programa, que foi ambientado, em grande parte, em boates e clubes noturnos da cidade.

“Meu documentário não é um filme de quintal”, diz José Rafael Mamigonian, 28 anos, diretor de Seo Chico. “É um registro antropológico e humano de interesse universal. Quero fazer um filme à altura dessa cultura agonizante”, diz. Em 1996, o cineasta rodava um curta sobre “Seo Chico”, quando o camponês foi assassinado em circunstâncias não esclarecidas até hoje. Mamigonian, mais conhecido como Zé Rafael, concluiu o curta só com imagens fixas e depoimentos em off do personagem. Guardou o material filmado (com fotografia de Mario Carneiro e câmera de Dib Lutfi) para o longa.

Agora Zé Rafael pretende exibir o material para a comunidade onde “Seo” Chico vivia e filmar a repercussão. “É um pouco a estrutura do filme Cabra marcado para morrer”, explica o diretor.
Atualmente ele grava as últimas imagens no Ribeirão da Ilha, freguesia onde seu personagem viveu.

Os diretores Zeca Pires, 40 anos, e José Frazão, 52 anos, pretendem apresentar em Procuradas um painel abrangente de Florianópolis, mostrando tanto pontos modernos da cidade quanto vilarejos antigos, onde ainda se cultivam ostras, como em Santo Antônio de Lisboa. Vai ser rodado em vídeo digital e depois transferido para película de 35 mm. Nele duas garotas de programa (uma delas seria vivida por Deborah Secco, mas foi substituída pela atriz Paula Burlamaqui) desaparecem durante um passeio de barco com dois executivos. Uma cineasta (Rita Guedes), que realiza um documentário sobre prostitutas investiga o caso. “Nossa idéia é brincar um pouco com os limites entre ficção e documentário”, diz Zeca Pires. As filmagens de seu primeiro longa iniciaram dia 2 de maio e tiveram 55 locações, todas na cidade. Todo o elenco foi colaborador (não ganhou nada para trabalhar), menos, é claro, as atrizes Paula Burlamaqui, Rita Guedes, Mariana Ximenez e a ex-modelo Cláudia Liz, todas integrando o núcleo principal do longa.

O restante do elenco, coadjuvantes e figurantes, somam aproximadamente 60 pessoas. Eram atores e modelos da cidade, que toparam participar por “amor à arte”, por experiência e para aparecer na mídia, coisa que o filme tem feito bastante. Já houve uma festa de pré-lançamento no Rio de Janeiro, em março, para chamar atenção e atrair possíveis patrocinadores. Deu certo: Furnas, TIM Celular, Dimas e Jurerê Beach Village entraram como patrocinadores do filme. Com a grana rolando, Procuradas já está atualmente em fase de montagem.

Procuradas teve como figurinista a expert Lou Hamad, que estudou moda na Itália e assinou o figurino das principais produções catarinenses e outras nacionais. Sua assistente, Veridiana Piovesan, trabalhou dia e noite junto com Lou na escolha e confecção dos figurinos. Veridiana confessa que já estava ficando doida com tanta gente para vestir. E explica: “Temos uma pequena verba para mandar fazer as roupas dos personagens principais, mas a maior parte do figurino é emprestado de amigos nossos e de algumas lojas”.

Apesar de bem planejado, o nascimento do cinema catarinense não está livre de surpresas. Veridiana conta um episódio, exemplo das dificuldades enfrentadas no caminho: “Em abril, nossa central de produção foi arrombada à noite, num fim-de-semana. Foi um absurdo! Os ladrões “pescaram”, literalmente, várias peças de roupas através da grade da janela. Ficamos desesperadas, eu e a Lou, pois eram roupas emprestadas, mas depois conversamos com o Zeca e ele nos disse que existe um seguro que vai cobrir os prejuízos, avaliados em R$1 mil”.

Zeca Pires é presidente da Cinemateca Catarinense. Seu curta-metragem Ilha, lançado ano passado, foi selecionado para o Festival de Cinema de Curitiba e para o 4º Festival Internacional de Curtas-Metragens de Belo Horizonte, realizado na primeira quinzena de junho. No ano passado, os catarinenses conseguiram o feito inédito de emplacar dois curtas na competição do Festival de Gramado: Ilha, de Zeca Pires, e Roda dos expostos, de Maria Emília de Azevedo, que ganhou o Kikito de melhor fotografia. Ilha tem como colaboradores Tabajara Ruas, escritor e roteirista, e o ator Waldir Brazil e tem no elenco além de Leona Cavalli, Júlia Soares Weiss e Carmem Lúcia. O curta já foi exibido na Mostra de Tiradentes, nos festivais de Varginha e de Recife e na Mostra de Mercado de Clermont-Ferrand, na França.

Cena do pioneiroPara se ter uma idéia do que toda essa cena significa, basta lembrar que, desde 1980, o único longa rodado em Florianópolis havia sido Cruz e Souza, de Sylvio Back, em 1999. Antes dele só havia sido feito o longa O preço da ilusão, filmado em 1957, por Nilton Nascimento, do Grupo Sul, considerado “a primeira película catarinense”. O grande mérito de O preço da ilusão foi sua própria realização. Num tempo eCartaz: O Preço da Ilusãom que Florianópolis era totalmente alheia à arte ou em que diante das dificuldades equipes profissionais, muitas vezes, abandonavam um filme, inacabado. Foi uma vitória um grupo de amadores ter levado a tarefa até o fim, com pouquíssimos recursos financeiros e técnicos. Essa carência e esse amadorismo foram também a ruína do filme, pois seus defeitos técnicos fizeram com que a censura da época não lhe concedesse o “Certificado de boa qualidade”. Por causa disso, sua exibição pelas cadeias cinematográficas não foi obrigatória. Foi um desastre, mas, como garante Eglê Malheiros, que fez o argumento do filme, “foi o fracasso mais criativo e multiplicador da nossa cultura”.


Febre de curtas - Além dos dois longas em andamento, Santa Catarina vive um florescimento do curta-metragem. Há pelo menos quatro em realização atualmente. Parte desse aquecimento da produção deve-se à lei estadual de incentivo à cultura, criada pelo governo peemedebista e posta em prática pela atual gestão. A lei permite dedução de ICMS às empresas que investirem em cultura.

No final de 2001 surgiu outro decisivo empurrão estatal. Através de concurso público, o governo destinou R$ 800 mil para a produção de um longa-metragem (o vencedor foi o documentário Seo Chico) e R$ 240 mil para a produção de três curtas (R$ 80 mil para cada, a maior premiação do país), além de verbas para realização de vídeos, projetos de pesquisa e compra de equipamentos.

Nos últimos quatro anos Santa Catarina produziu oito curtas. Alguns deles foram muito bem recebidos fora do Estado, como Novembrada e Desterro, os dois de Eduardo Paredes, que ganhou vários prêmios em Gramado, e Fronteira, de Chico Faganello.

Atualmente existem quatro curtas em fase de produção e realização: La Mar, de Sandra Alves, Alumbramentos, da TVI, e Sorria, você está sendo filmado, de Chico Caprário. Os três venceram o concurso público estadual de apoio ao cinema. Há outro projeto já em execução, que é uma parceria da RBS com a TVI, para a produção de quatro médias metragens catarinenses. Eles têm exibição prevista para os sábados, na programação da RBS TV.

O outro curta, Santo Mágico, é uma adaptação de um livro do crítico de arte catarinense Harry Laus. É a história, tida como verídica e, até hoje, inexplicável, da aparição de um santo no marco da Marinha, em Porto Belo. O filme narra a trajetória de três personagens que presenciam a aparição, além das mais diversas reações da comunidade ao episódio. Seu diretor é Ronaldo dos Anjos, de Tijucas. O curta é protagonizado pelos atores Sérgio Mamberti, Giovana Gold e Waldir Brazil, além de atores locais. Foi financiado pela lei estadual de Incentivo à Cultura e as filmagens estão bem adiantadas em Florianópolis.

La Mar, de Sandra Alves, vai contar a história verídica de duas velejadoras, que ficaram à deriva durante três dias, no mar da praia dos Ingleses, Florianópolis. Para protagonizá-lo, a diretora selecionou atrizes do curso de artes cênicas da UDESC. Mesmo com baixo orçamento, pouco mais de R$ 80 mil para fazer tudo, Sandra Alves acertou um cachê com as atrizes: “Não é nem de longe o que elas mereciam ganhar, mas é um mínimo de reconhecimento”. A atriz que interpreta uma das velejadoras é Mônica Siedler, que ano passado trabalhou no núcleo principal da novela Laços de família, interpretando a empregada doméstica Socorro. As filmagens começaram em maio e a diretora está buscando parcerias e colaboradores.

Curso universitário - Outras iniciativas têm contribuído para o surgimento de um núcleo cinematográfico em Santa Catarina. Uma foi a criação, no ano de 1999, do curso de Cinema e Vídeo da Unisul, no campus de Palhoça, Grande Florianópolis. É o único curso de graduação em cinema de toda a região Sul do país. O vídeo digital O corredor, produzido pelos alunos da Unisul, ganhou em abril o prêmio principal no Festival Curta-se, realizado em Aracaju. A produção tem 17 minutos de duração e foi dirigida por Loly Menezes e Jano Moskorz, com supervisão dos cineastas Eduardo Paredes e Peter Lorenzo - professores na universidade. O corredor trata do assassinato de um escritor e revela o submundo de uma comunidade. A história se passa no corredor de um hotel decadente na década de 80 e foi filmada em dois dias, com 15 atores que ensaiaram durante três meses. O Hotel Felipe, no Centro de Florianópolis, foi a locação escolhida pelos diretores, que também assinam o roteiro junto com Valeska Bittencourt, que também assina a direção de arte.

Eventos - Um evento importante é o Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM), que chega esse ano a sua sexta edição. Realizado anualmente, o FAM reúne profissionais de cinema e televisão do Brasil e de países vizinhos para debater as questões do setor. Exibe, paralelamente, uma mostra da produção recente desses países, com grande presença de público. Outro dado que reflete e reforça essa efervescência cinematográfica é a “imigração” para Florianópolis de cineastas e roteiristas de outros estados. Alguns exemplos: o baiano José Frazão, que acaba de se mudar para a cidade para rodar o longa Procuradas e tocar outros projetos. O gaúcho Tabajara Ruas, que tem feito roteiros para os diretores Zeca Pires e Chico Faganello, elegeu o Canto dos Araçás, na beira da Lagoa da Conceição, para viver com sua esposa e filhos. Tabajara também fez os roteiros dos filmes gaúchos Anaí de Las Missiones e de Netto perde sua alma, recém premiado em Gramado. Tabajara vem se destacando pela produção de roteiros com temática histórica e gaúcha.

Documentários - Os documentários também estão a pleno vapor. Além de Seo Chico, há pelo menos dois em produção: o vídeo O capitão imaginário, de Chico Faganello, e Diacuí, de Tânia Lamarca - diretora do premiado Tainá – Uma aventura na Amazônia.

O vídeo de Faganello, Fronteira, em fase de finalização, é inspirado em relatos de navegadores europeus, que visitaram a Ilha de Santa Catarina nos séculos 18 e 19. “A idéia é contrastar o depoimento deles com o que existe hoje, e ao mesmo tempo, mostrar as distorções do imaginário europeu a respeito daqui”, diz o diretor. O documentário já tem garantido uma primeira tiragem de três mil cópias em VHS, que serão exibidas em escolas da rede pública.

Tânia Lamarca voltou à sua Florianópolis natal depois de morar durante décadas no Rio. O filme que prepara é o registro da insólita história da índia Diacuí, que se casou em 1951 com um sertanista na igreja da Candelária, no Rio, sob os holofotes da mídia, capitaneada na época pelo empresário Assis Chateaubriand. Nove meses depois, Diacuí morreu no parto de sua filha, que leva o mesmo nome e hoje, aos 50 anos, vive em Uruguaiana (RS). “Estou partindo da Diacuí filha para fazer a história de volta”, explica a diretora.

Produção (1957) do primeiro longa catarinenseOs espinhos - Claro que nem tudo são flores nesse quadro. O concurso público para financiamento de longas e curtas, por exemplo, é marcado por um visível ranço provinciano. Por decisão do governador Amin, só podem ser contempladas obras com “temática catarinense”. A comunidade cinematográfica, mesmo sendo contra, teve de se submeter a essa castração de sua liberdade criativa.

Outro problema é a disputa de egos entre os realizadores do próprio Estado. Se, no cinema brasileiro em geral, são comuns os fuxicos, intrigas e inimizades, a tensão se intensifica num ambiente como o florianopolitano, em que todo mundo se conhece e as fontes de recursos são poucas. Como os órgãos públicos do setor (Cinemateca Catarinense, Fundo Municipal de Cinema, MIS) dependem uns dos outros e são dirigidos por cineastas de turmas diferentes, às vezes o processo emperra. Mas quem disse que é fácil fazer cinema nesse país?

Thaís Corrêa

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