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Mesmo com uma produção
cinematográfica inexpressiva ao longo das últimas
décadas, Santa Catarina esboça uma reação
a essa letargia na criação de obras audiovisuais.
São menos de cinco os longas-metragens concluídos
até hoje no Estado. Os cineastas catarinenses de expressão
nacional, como Rogério Sganzerla, de Joaçaba (autor
do famoso filme O bandido da luz vermelha, de 1968),
Ody Fraga, de Florianópolis e Sylvio Back, de Blumenau,
saíram jovens do Estado e fizeram carreira fora dele.
Para piorar, a rede exibidora é uma das mais pobres e
monopolizadas do país. Em Florianópolis, por exemplo,
só há sete salas comerciais de cinema - a oitava
é um cineclube, o Bar Cine York. Em suma: poucos filmes,
mercado de trabalho acanhado, cultura cinematográfica
precária.
A
boa notícia é que a situação está
mudando de maneira decisiva. No resto do país fala-se
muito em “retomada” do cinema, enquanto em Santa
Catarina, o termo mais adequado, talvez seja mesmo “nascimento”.
O primeiro dado significativo é que estão sendo
rodados ao mesmo tempo em Florianópolis dois longas-metragens:
o documentário Vida e obra de Seo Chico, de
José Rafael Mamigonian, e o policial Procuradas
de José Frazão e Zeca Pires. Ambos tem em comum
o baixo orçamento. Cada um deles deverá custar
R$ 800 mil.
Fora isso não poderia haver dois filmes mais contrastantes.
O primeiro é um documentário sobre o camponês
Francisco Thomaz dos Santos, o “Seo Chico”, assassinado
em 1996. Ele foi um mito na cidade, pois era o último
representante de um modo de vida rural que está em extinção,
o da produção dos engenhos de farinha e de cachaça
na ilha de Santa Catarina. Já o filme Procuradas
é um policial contemporâneo sobre garotas de programa,
que foi ambientado, em grande parte, em boates e clubes noturnos
da cidade.
“Meu documentário não é um filme
de quintal”, diz José Rafael Mamigonian, 28 anos,
diretor de Seo Chico. “É um registro antropológico
e humano de interesse universal. Quero fazer um filme à
altura dessa cultura agonizante”, diz. Em 1996, o cineasta
rodava um curta sobre “Seo Chico”, quando o camponês
foi assassinado em circunstâncias não esclarecidas
até hoje. Mamigonian, mais conhecido como Zé Rafael,
concluiu o curta só com imagens fixas e depoimentos em
off do personagem. Guardou o material filmado (com
fotografia de Mario Carneiro e câmera de Dib Lutfi) para
o longa.
Agora Zé Rafael pretende exibir o material para a comunidade
onde “Seo” Chico vivia e filmar a repercussão.
“É um pouco a estrutura do filme Cabra marcado
para morrer”, explica o diretor.
Atualmente ele grava as últimas imagens no Ribeirão
da Ilha, freguesia onde seu personagem viveu.
Os diretores Zeca Pires, 40 anos, e José Frazão,
52 anos, pretendem apresentar em Procuradas um painel
abrangente de Florianópolis, mostrando tanto pontos modernos
da cidade quanto vilarejos antigos, onde ainda se cultivam ostras,
como em Santo Antônio de Lisboa. Vai ser rodado em vídeo
digital e depois transferido para película de 35 mm.
Nele duas garotas de programa (uma delas seria vivida por Deborah
Secco, mas foi substituída pela atriz Paula Burlamaqui)
desaparecem durante um passeio de barco com dois executivos.
Uma cineasta (Rita Guedes), que realiza um documentário
sobre prostitutas investiga o caso. “Nossa idéia
é brincar um pouco com os limites entre ficção
e documentário”, diz Zeca Pires. As filmagens de
seu primeiro longa iniciaram dia 2 de maio e tiveram 55 locações,
todas na cidade. Todo o elenco foi colaborador (não ganhou
nada para trabalhar), menos, é claro, as atrizes Paula
Burlamaqui, Rita Guedes, Mariana Ximenez e a ex-modelo Cláudia
Liz, todas integrando o núcleo principal do longa.
O restante do elenco, coadjuvantes e figurantes, somam aproximadamente
60 pessoas. Eram atores e modelos da cidade, que toparam participar
por “amor à arte”, por experiência
e para aparecer na mídia, coisa que o filme tem feito
bastante. Já houve uma festa de pré-lançamento
no Rio de Janeiro, em março, para chamar atenção
e atrair possíveis patrocinadores. Deu certo: Furnas,
TIM Celular, Dimas e Jurerê Beach Village entraram como
patrocinadores do filme. Com a grana rolando, Procuradas
já está atualmente em fase de montagem.
Procuradas teve como figurinista a expert
Lou Hamad, que estudou moda na Itália e assinou o figurino
das principais produções catarinenses e outras
nacionais. Sua assistente, Veridiana Piovesan, trabalhou dia
e noite junto com Lou na escolha e confecção dos
figurinos. Veridiana confessa que já estava ficando doida
com tanta gente para vestir. E explica: “Temos uma pequena
verba para mandar fazer as roupas dos personagens principais,
mas a maior parte do figurino é emprestado de amigos
nossos e de algumas lojas”.
Apesar de bem planejado, o nascimento do cinema catarinense
não está livre de surpresas. Veridiana conta um
episódio, exemplo das dificuldades enfrentadas no caminho:
“Em abril, nossa central de produção foi
arrombada à noite, num fim-de-semana. Foi um absurdo!
Os ladrões “pescaram”, literalmente, várias
peças de roupas através da grade da janela. Ficamos
desesperadas, eu e a Lou, pois eram roupas emprestadas, mas
depois conversamos com o Zeca e ele nos disse que existe um
seguro que vai cobrir os prejuízos, avaliados em R$1
mil”.
Zeca Pires é presidente da Cinemateca Catarinense. Seu
curta-metragem Ilha, lançado ano passado, foi
selecionado para o Festival de Cinema de Curitiba e para o 4º
Festival Internacional de Curtas-Metragens de Belo Horizonte,
realizado na primeira quinzena de junho. No ano passado, os
catarinenses conseguiram o feito inédito de emplacar
dois curtas na competição do Festival de Gramado:
Ilha, de Zeca Pires, e Roda dos expostos, de Maria
Emília de Azevedo, que ganhou o Kikito de melhor fotografia.
Ilha tem como colaboradores Tabajara Ruas, escritor
e roteirista, e o ator Waldir Brazil e tem no elenco além
de Leona Cavalli, Júlia Soares Weiss e Carmem Lúcia.
O curta já foi exibido na Mostra de Tiradentes, nos festivais
de Varginha e de Recife e na Mostra de Mercado de Clermont-Ferrand,
na França.
Para
se ter uma idéia do que toda essa cena significa, basta
lembrar que, desde 1980, o único longa rodado em Florianópolis
havia sido Cruz e Souza, de Sylvio Back, em 1999. Antes
dele só havia sido feito o longa O preço da
ilusão, filmado em 1957, por Nilton Nascimento,
do Grupo Sul, considerado “a primeira película
catarinense”. O grande mérito de O preço
da ilusão foi sua própria realização.
Num tempo e m
que Florianópolis era totalmente alheia à arte
ou em que diante das dificuldades equipes profissionais, muitas
vezes, abandonavam um filme, inacabado. Foi uma vitória
um grupo de amadores ter levado a tarefa até o fim, com
pouquíssimos recursos financeiros e técnicos.
Essa carência e esse amadorismo foram também a
ruína do filme, pois seus defeitos técnicos fizeram
com que a censura da época não lhe concedesse
o “Certificado de boa qualidade”. Por causa disso,
sua exibição pelas cadeias cinematográficas
não foi obrigatória. Foi um desastre, mas, como
garante Eglê Malheiros, que fez o argumento do filme,
“foi o fracasso mais criativo e multiplicador da nossa
cultura”.
Febre de curtas -
Além dos dois longas em andamento, Santa Catarina vive
um florescimento do curta-metragem. Há pelo menos quatro
em realização atualmente. Parte desse aquecimento
da produção deve-se à lei estadual de incentivo
à cultura, criada pelo governo peemedebista e posta em
prática pela atual gestão. A lei permite dedução
de ICMS às empresas que investirem em cultura.
No final de 2001 surgiu outro decisivo empurrão estatal.
Através de concurso público, o governo destinou
R$ 800 mil para a produção de um longa-metragem
(o vencedor foi o documentário Seo Chico) e
R$ 240 mil para a produção de três curtas
(R$ 80 mil para cada, a maior premiação do país),
além de verbas para realização de vídeos,
projetos de pesquisa e compra de equipamentos.
Nos últimos quatro anos Santa Catarina produziu oito
curtas. Alguns deles foram muito bem recebidos fora do Estado,
como Novembrada e Desterro, os dois de Eduardo
Paredes, que ganhou vários prêmios em Gramado,
e Fronteira, de Chico Faganello.
Atualmente existem quatro curtas em fase de produção
e realização: La Mar, de Sandra Alves,
Alumbramentos, da TVI, e Sorria, você está
sendo filmado, de Chico Caprário. Os três
venceram o concurso público estadual de apoio ao cinema.
Há outro projeto já em execução,
que é uma parceria da RBS com a TVI, para a produção
de quatro médias metragens catarinenses. Eles têm
exibição prevista para os sábados, na programação
da RBS TV.
O outro curta, Santo Mágico, é uma adaptação
de um livro do crítico de arte catarinense Harry Laus.
É a história, tida como verídica e, até
hoje, inexplicável, da aparição de um santo
no marco da Marinha, em Porto Belo. O filme narra a trajetória
de três personagens que presenciam a aparição,
além das mais diversas reações da comunidade
ao episódio. Seu diretor é Ronaldo dos Anjos,
de Tijucas. O curta é protagonizado pelos atores Sérgio
Mamberti, Giovana Gold e Waldir Brazil, além de atores
locais. Foi financiado pela lei estadual de Incentivo à
Cultura e as filmagens estão bem adiantadas em Florianópolis.
La Mar, de Sandra Alves, vai contar a história
verídica de duas velejadoras, que ficaram à deriva
durante três dias, no mar da praia dos Ingleses, Florianópolis.
Para protagonizá-lo, a diretora selecionou atrizes do
curso de artes cênicas da UDESC. Mesmo com baixo orçamento,
pouco mais de R$ 80 mil para fazer tudo, Sandra Alves acertou
um cachê com as atrizes: “Não é nem
de longe o que elas mereciam ganhar, mas é um mínimo
de reconhecimento”. A atriz que interpreta uma das velejadoras
é Mônica Siedler, que ano passado trabalhou no
núcleo principal da novela Laços de família,
interpretando a empregada doméstica Socorro. As filmagens
começaram em maio e a diretora está buscando parcerias
e colaboradores.
Curso universitário - Outras
iniciativas têm contribuído para o surgimento de
um núcleo cinematográfico em Santa Catarina. Uma
foi a criação, no ano de 1999, do curso de Cinema
e Vídeo da Unisul, no campus de Palhoça, Grande
Florianópolis. É o único curso de graduação
em cinema de toda a região Sul do país. O vídeo
digital O corredor, produzido pelos alunos da Unisul,
ganhou em abril o prêmio principal no Festival Curta-se,
realizado em Aracaju. A produção tem 17 minutos
de duração e foi dirigida por Loly Menezes e Jano
Moskorz, com supervisão dos cineastas Eduardo Paredes
e Peter Lorenzo - professores na universidade. O corredor
trata do assassinato de um escritor e revela o submundo de uma
comunidade. A história se passa no corredor de um hotel
decadente na década de 80 e foi filmada em dois dias,
com 15 atores que ensaiaram durante três meses. O Hotel
Felipe, no Centro de Florianópolis, foi a locação
escolhida pelos diretores, que também assinam o roteiro
junto com Valeska Bittencourt, que também assina a direção
de arte.
Eventos - Um
evento importante é o Florianópolis Audiovisual
Mercosul (FAM), que chega esse ano a sua sexta edição.
Realizado anualmente, o FAM reúne profissionais de cinema
e televisão do Brasil e de países vizinhos para
debater as questões do setor. Exibe, paralelamente, uma
mostra da produção recente desses países,
com grande presença de público. Outro dado que
reflete e reforça essa efervescência cinematográfica
é a “imigração” para Florianópolis
de cineastas e roteiristas de outros estados. Alguns exemplos:
o baiano José Frazão, que acaba de se mudar para
a cidade para rodar o longa Procuradas e tocar outros
projetos. O gaúcho Tabajara Ruas, que tem feito roteiros
para os diretores Zeca Pires e Chico Faganello, elegeu o Canto
dos Araçás, na beira da Lagoa da Conceição,
para viver com sua esposa e filhos. Tabajara também fez
os roteiros dos filmes gaúchos Anaí de Las
Missiones e de Netto perde sua alma, recém
premiado em Gramado. Tabajara vem se destacando pela produção
de roteiros com temática histórica e gaúcha.
Documentários - Os
documentários também estão a pleno vapor.
Além de Seo Chico, há pelo menos dois
em produção: o vídeo O capitão
imaginário, de Chico Faganello, e Diacuí,
de Tânia Lamarca - diretora do premiado Tainá
– Uma aventura na Amazônia.
O vídeo de Faganello, Fronteira, em fase de
finalização, é inspirado em relatos de
navegadores europeus, que visitaram a Ilha de Santa Catarina
nos séculos 18 e 19. “A idéia é contrastar
o depoimento deles com o que existe hoje, e ao mesmo tempo,
mostrar as distorções do imaginário europeu
a respeito daqui”, diz o diretor. O documentário
já tem garantido uma primeira tiragem de três mil
cópias em VHS, que serão exibidas em escolas da
rede pública.
Tânia Lamarca voltou à sua Florianópolis
natal depois de morar durante décadas no Rio. O filme
que prepara é o registro da insólita história
da índia Diacuí, que se casou em 1951 com um sertanista
na igreja da Candelária, no Rio, sob os holofotes da
mídia, capitaneada na época pelo empresário
Assis Chateaubriand. Nove meses depois, Diacuí morreu
no parto de sua filha, que leva o mesmo nome e hoje, aos 50
anos, vive em Uruguaiana (RS). “Estou partindo da Diacuí
filha para fazer a história de volta”, explica
a diretora.
Os
espinhos - Claro que nem tudo são
flores nesse quadro. O concurso público para financiamento
de longas e curtas, por exemplo, é marcado por um visível
ranço provinciano. Por decisão do governador Amin,
só podem ser contempladas obras com “temática
catarinense”. A comunidade cinematográfica, mesmo
sendo contra, teve de se submeter a essa castração
de sua liberdade criativa.
Outro problema é a disputa de egos entre os realizadores
do próprio Estado. Se, no cinema brasileiro em geral,
são comuns os fuxicos, intrigas e inimizades, a tensão
se intensifica num ambiente como o florianopolitano, em que
todo mundo se conhece e as fontes de recursos são poucas.
Como os órgãos públicos do setor (Cinemateca
Catarinense, Fundo Municipal de Cinema, MIS) dependem uns dos
outros e são dirigidos por cineastas de turmas diferentes,
às vezes o processo emperra. Mas quem disse que é
fácil fazer cinema nesse país? |
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