Número 1 - Ano I - Edição fechada em 29 de Julho de 2002 Florianópolis-SC
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Um retrato do Brasil. Um retrato de São Paulo. A primeira cena já diz para que o filme veio: dois engenheiros contratam um homem para matar seu sócio. Esse é o ato inicial para O invasor, um dos filmes nacionais mais premiados do ano, que foi eleito o melhor longa latino-americano no Festival Sundance (EUA) e melhor filme no Festival de Cinema Brasileiro de Miami. Ganhou também seis prêmios no Festival de Brasília em 2001, incluindo melhor direção e o prêmio especial da crítica. Mas o argumento do filme não trata só de um assassinato. A platéia assiste tensa ao desenrolar desta história policial, que reflete sobre a conduta ética e moral do brasileiro. O filme revela as diferenças sociais de um país que se rege pela injustiça. Mostra parte da periferia que sai do subúrbio e invade o espaço da elite.
O destaque do filme é o roteiro, baseado no livro do jornalista Marçal Aquino. O invasor é o terceiro filme de uma parceria de 12 anos entre o diretor Beto Brant e o autor, que já rendeu obras como Os matadores e Ação entre amigos. A temática segue a mesma: a violência e suas conseqüências na vida de pessoas despreparadas para enfrentá-la. Em Os matadores, produzido em 1997, Murilo Benício interpreta um assaltante de carros assustado em ter que matar o parceiro. Já Ação entre amigos, de 1998, conta a história de ex-guerrilheiros que resolvem ajustar contas com passado. A violência do O invasor está implícita, mas aparece num drama humano, de arrependimento e de culpa. Outra característica do filme é a sensualidade, ajudada pela fotografia realista.
Mas grande parte do sucesso do filme pode ser creditada ao diretor do filme, Beto Brant. Câmera nos ombros e a montagem moderninha fazem parte de seu estilo, tido pela crítica como o grande renovador da linguagem audiovisual, desde a retomada de produção do cinema nacional. Tanto que já foi chamado de Tarantino brasileiro, apelido que detesta. “Tarantino é um parodiador, copia cenas de vários filmes e faz um novo. Até gosto dos filmes dele, mas prefiro criar histórias. E meu compromisso com o cinema está em outro lugar”, diz. Para explicar um pouco desse “compromisso” Beto Brant concedeu esta entrevista para o Zero.

Zero – Há quanto tempo você trabalha com cinema?
Beto Brant - Trabalho há 16 anos. Comecei fazendo curta-metragem com super-8. Mas hoje em dia, nem faz muito sentido, porque existem as câmeras digitais com qualidade muito superior e também com uma possibilidade de invenção, de mexer na cor, na intensidade, na velocidade. O super-8 é muito restrito, mas foi com ele que surgiu a primeira vontade de elaborar um discurso através de imagens e audiovisual. Acho que já foi até antes de 86 quando eu trabalhava de maneira amadora. Só fui ganhar dinheiro com isso em 88 ou 89.

Z – Você começou trabalhando em alguma produção ou fez algum curso de cinema?
B.B. – Eu fiz faculdade de cinema, um curso que não vale nem a pena falar. Mas lá foi um lugar de ponto de encontro. Conheci gente como o Renato Ciasca, que se formou comigo e foi produtor dos meus três filmes. O que eu sinto é que a Universidade está muito apegada ao conhecimento acumulado, está longe da vivência e da rua.

Z – Você falou em rua. Todos os seus filmes têm uma temática ligada à violência. Qual o motivo para esse interesse?
B.B. – Não, o cinema que eu faço é muito comprometido com a literatura que o Marçal faz. E ele tem uma experiência como jornalista de muitos anos, e gosto desse apego dele com a observação da realidade. O que eu acho interessante nessa parceria é que a gente faz um registro do nosso olhar sobre o mundo contemporâneo. O sentido do cinema para mim é a observação e, por isso, eu não consigo abstrair a realidade, fazer uma interpretação muito interior ou atemporal. Eu necessito que meus pés fiquem no chão. Por outro lado, acho estimulante apontar a câmera e não reproduzir o que está na frente dela, mas sim criar. Eu acho que a câmera recorta a realidade.

Z – Como é que você faz a transição entre literatura, roteiro e filmagem. Você tem algum método de criação de personagem ou forma de trabalho?
B.B. – Eu sou contra o método, porque a atividade de cinema tem um lado racional, mas também tem outro de intuição. Não se pode enrijecer ou burocratizar a filmagem. Fazer como os americanos, que se comunicam no set através de memorando. Partir da literatura do Marçal já é um ganho, mas eu preciso incorporar o acaso. O invasor, por exemplo, foi feito com muita informalidade na maneira como é filmado, pois existe muita colaboração do fotógrafo, do cenógrafo, ou da maquiadora. Consegui aliar inteligências e sensibilidades, quando concedo espaço para os atores improvisarem uma fala, por exemplo.

Z – O movimento dinamarquês Dogma mostrou que é possível fazer filmes bons e baratos. Como o uso de tecnologia digital ajuda a diminuir os custos de produção?
B.B. – Filmamos em película 16 mm, para poder usar negativos mais sensíveis, aproveitando a luz rarefeita. Daí, a gente telecinou em vídeo de alta definição (HD), o que nos permitiu corrigir todas as sub-exposições e dar eletronicamente o tratamento visual que pretendíamos. Usamos o transfer, um processo novo e mais caro do que a cinescopagem (o método mais comum para passar do filme ao digital) e que era também experimental. Foi o primeiro filme produzido assim, com apoio do Estúdio Mega. Essa coisa de abraçar a tecnologia, essa revolução que a imagem está sofrendo com o uso digital. E é possível manipular muito a imagem, a cor, as tonalidades, tirando o filme de um realismo, dando uma elaboração maior de acabamento através desse procedimento. Em todos os filmes que faço, além do compromisso com as questões morais e éticas que o filme levanta, busco caminhos alternativos e incorporar isto na tecnologia utilizada no filme.

Z – Qual foi o custo de produção de O invasor?
B. B. – Se você considerar equipe paga, com encargos sociais, com tecnologia, câmera, negativos, pós-produção, som e tal, é um filme muito barato. A gente gastou R$ 700 mil em dinheiro. Principalmente com a repercussão que ele tem conseguido, com alcance internacional, ser exibido em salas de cinema na França e na Inglaterra. Infelizmente aqui no Brasil só vai ao cinema quem lê jornal. Porque não tem como a gente entrar na publicidade, é muito caro.

Z – É possível fazer cinema no Brasil sem o apoio da televisão?
B. B. – A televisão no Brasil é muito medíocre porque ela está muito preocupada com questões de contabilidade, de renda publicitária, índices de audiência. Existem ilhas como a TV Cultura de São Paulo, que inclusive co-produziu Ação entre amigos. Mas há muita falta de comprometimento ético, que a televisão tem com a formação cultural, com a educação, de perpetuar aquilo que é bom, que é importante. Não só a tradição, mas apontar novos caminhos. Mexer com a cabeça das pessoas. Nós fazemos cinema sem a televisão porque ela não dá palpite nenhum. Então temos essa liberdade, sem censura ideológica, sem os anunciantes decidirem como vai terminar o filme. Essa independência eu prezo. Os filmes que faço são assistidos por pouca gente, por causa da dificuldade de distribuição. Quem acaba assistindo é uma intelectualidade, a elite que tem acesso à informação. Mas as idéias que estão neles são para o grande público, mas infelizmente, não chega pela falta de apoio. A Globo, por exemplo, exibiu Os matadores e obteve uma boa audiência.

Z – Dá para criar uma indústria cinematográfica no Brasil ?
B. B. – Já existe uma indústria em pequena escala. Ela pode ser considerada no momento que você tem relações comerciais, fornecedores, mercado de trabalho, parque industrial, equipamentos. Mas não concordo com a equação do cinema brasileiro que acaba cogitando apenas quando foi feito, quanto gastou e quantos milhões de pessoas assistiram. Para mim o que interessa que muita gente viu, que a informação alcance o público e não os resultados de arrecadação.

Z – Você acredita que exista uma rivalidade de filmes de mercado contra filmes de arte? A intenção do autor pode ser analisada quando você vê o filme ?
B. B. – Acho que as duas variações existem e devem coexistir. O cinema tem um poder de dar luz a tendências e níveis de compreensão da realidade, de informação, de iluminação, de poesia. Eu sou exigente na hora de assistir cinema, eu preciso dessa experiência mais completa, quase “sentir” o filme.

Z – Durante a história do cinema brasileiro é de se notar a presença do Estado como uma força, senão motriz, mas que impulsiona as artes. Qual seria a influência do Estado dentro dos roteiros dos filmes?
B. B. – Na era Collor o cinema brasileiro praticamente desapareceu. A retomada só aconteceu com as leis do audiovisual que facilitaram a captação de dinheiro. O problema é que o mecenas tem poder sobre o que você produz. A lei do audiovisual é um produto do liberalismo e pode gerar uma censura - ideológica não política - porque você tem que convencer um diretor de marketing de uma multinacional, que aquele filme tem que ser feito. Eu nunca mudei nada de um filme para atender a determinada empresa, mas conheço gente que já fez. Aí você vê o papel do Estado, que é dar um start no projeto. Tanto que a origem dos meus filmes foi em concursos, em avaliações de pessoas da classe. Meu primeiro filme, Os matadores, tem grande incentivo do Ministério da Cultura, através da Secretaria do Audiovisual, quando ganhou um prêmio de resgate do cinema brasileiro. O mesmo se repete em Ação entre amigos, que teve co-produção da TV Cultura, e O invasor, que ganhou o prêmio Cinema Brasil, um programa que financia fitas de baixo orçamento. Porque se você só depender do mercado, vamos ter muitos filmes estéreis, uma composição de marketing, que junta adaptação de um livro famoso com atores importantes e uma produção de arte sofisticada. A receita do sucesso.

Z – Você acha que o cinema brasileiro pode ter o destaque do cinema chinês ou dos filmes iranianos?
B. B. – Com certeza absoluta. O Invasor vai para a França e para a Inglaterra. Na França a distribuidora alegou que eles vivem uma situação de elite com a periferia muito semelhante. Na periferia de Paris existe uma tensão social muito forte lá por causa da presença dos árabes. É adaptável, é uma leitura possível para o parisiense. Mas o cinema latino-americano é que está em alta. Filmes expressivos feitos pelos argentinos e mexicanos formam uma cinematografia emergente nesse mercado.

Z – Qual cineasta que você pode dizer que ele é um espelho daquilo que você pensa ou acredita como cinema?
B. B. – Eu tenho uma grande admiração pelo Carlos Reichenbach, pela sua postura ética, a conduta dele, o respeito que ele tem, a liberdade e o entusiasmo com cinema são fantásticos. Os filmes que ele já fez como Anjos do Arrabalde, A mulher que inventou o Amor, Filme Demência, Amor palavra prostituta são um marco do cinema nacional. Também fui influenciado por filmes como Bye Bye Brasil, do Cacá Diegues, Deus e Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha, além de Martin Scorcese e os irmão Coen , que eu gosto muito.

Z – Qual é o ponto de convergência entre seus três filmes? E no que eles são iguais e no que eles são diferentes?
B. B. – Tem o Marçal, com a literatura dele. Nos Matadores que mostra violência do campo, da impunidade, Já no Ação entre Amigos também tem um tributo a uma geração que eu admiro, que projetou um futuro melhor para o país. Fala do contexto histórico como movimento estudantil, revolução sexual, da produção cultural e da política nacional. O presente no Ação entre Amigos é sem cor, contrastado, sombrio, arcaico como uma rinha de galo. O Invasor é um olhar sobre o contemporâneo. Principalmente em São Paulo, que é a cidade onde eu vivo, pode se notar a péssima distribuição de renda, a pobreza das favelas e a violência chegando na casa dos ricos. Junta a isso a ascensão de movimento social como o rap e a uma juventude urbana alienada dá para pintar parte do cenário do que é São Paulo hoje.

Z – Qual é a parte do filme que você acha mais difícil e qual a que você mais gosta ?
B. B. – Entre captação de dinheiro, roteirização, produção em si e distribuição a que eu mais gosto é filmar. A filmagem é a parte mais legal que tem. A mais difícil. Tanto lançar, distribuir o filme, como arrumar a grana. São os dois grandes desafios para quem quer fazer cinema no Brasil.

Z – Qual vai ser seu próximo filme ?
B. B. – Meu próximo projeto vai ser um filme, uma história de amor. Mas não quero falar muito sobre isso.


Por Wendel Martins

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