Um
retrato do Brasil. Um retrato de São Paulo. A primeira
cena já diz para que o filme veio: dois engenheiros contratam
um homem para matar seu sócio. Esse é o ato inicial
para O invasor, um dos filmes nacionais mais premiados
do ano, que foi eleito o melhor longa latino-americano no Festival
Sundance (EUA) e melhor filme no Festival de Cinema Brasileiro
de Miami. Ganhou também seis prêmios no Festival
de Brasília em 2001, incluindo melhor direção
e o prêmio especial da crítica. Mas o argumento
do filme não trata só de um assassinato. A platéia
assiste tensa ao desenrolar desta história policial,
que reflete sobre a conduta ética e moral do brasileiro.
O filme revela as diferenças sociais de um país
que se rege pela injustiça. Mostra parte da periferia
que sai do subúrbio e invade o espaço da elite.
O destaque do filme é o roteiro, baseado no livro do
jornalista Marçal Aquino. O invasor é
o terceiro filme de uma parceria de 12 anos entre o diretor
Beto Brant e o autor, que já rendeu obras como Os
matadores e Ação entre amigos. A
temática segue a mesma: a violência e suas conseqüências
na vida de pessoas despreparadas para enfrentá-la. Em
Os matadores, produzido em 1997, Murilo Benício
interpreta um assaltante de carros assustado em ter que matar
o parceiro. Já Ação entre amigos,
de 1998, conta a história de ex-guerrilheiros que resolvem
ajustar contas com passado. A violência do O invasor
está implícita, mas aparece num drama humano,
de arrependimento e de culpa. Outra característica do
filme é a sensualidade, ajudada pela fotografia realista.
Mas grande parte do sucesso do filme pode ser creditada ao diretor
do filme, Beto Brant. Câmera nos ombros e a montagem moderninha
fazem parte de seu estilo, tido pela crítica como o grande
renovador da linguagem audiovisual, desde a retomada de produção
do cinema nacional. Tanto que já foi chamado de Tarantino
brasileiro, apelido que detesta. “Tarantino é um
parodiador, copia cenas de vários filmes e faz um novo.
Até gosto dos filmes dele, mas prefiro criar histórias.
E meu compromisso com o cinema está em outro lugar”,
diz. Para explicar um pouco desse “compromisso”
Beto Brant concedeu esta entrevista para o Zero.
Zero – Há quanto tempo
você trabalha com cinema?
Beto Brant - Trabalho há 16 anos.
Comecei fazendo curta-metragem com super-8. Mas hoje em dia,
nem faz muito sentido, porque existem as câmeras digitais
com qualidade muito superior e também com uma possibilidade
de invenção, de mexer na cor, na intensidade,
na velocidade. O super-8 é muito restrito, mas foi
com ele que surgiu a primeira vontade de elaborar um discurso
através de imagens e audiovisual. Acho que já
foi até antes de 86 quando eu trabalhava de maneira
amadora. Só fui ganhar dinheiro com isso em 88 ou 89.
Z – Você começou
trabalhando em alguma produção ou fez algum
curso de cinema?
B.B. – Eu fiz faculdade de cinema,
um curso que não vale nem a pena falar. Mas lá
foi um lugar de ponto de encontro. Conheci gente como o Renato
Ciasca, que se formou comigo e foi produtor dos meus três
filmes. O que eu sinto é que a Universidade está
muito apegada ao conhecimento acumulado, está longe
da vivência e da rua.
Z – Você falou em rua.
Todos os seus filmes têm uma temática ligada
à violência. Qual o motivo para esse interesse?
B.B. – Não, o cinema que
eu faço é muito comprometido com a literatura
que o Marçal faz. E ele tem uma experiência como
jornalista de muitos anos, e gosto desse apego dele com a
observação da realidade. O que eu acho interessante
nessa parceria é que a gente faz um registro do nosso
olhar sobre o mundo contemporâneo. O sentido do cinema
para mim é a observação e, por isso,
eu não consigo abstrair a realidade, fazer uma interpretação
muito interior ou atemporal. Eu necessito que meus pés
fiquem no chão. Por outro lado, acho estimulante apontar
a câmera e não reproduzir o que está na
frente dela, mas sim criar. Eu acho que a câmera recorta
a realidade.
Z – Como é que você
faz a transição entre literatura, roteiro e
filmagem. Você tem algum método de criação
de personagem ou forma de trabalho?
B.B. – Eu sou contra o método,
porque a atividade de cinema tem um lado racional, mas também
tem outro de intuição. Não se pode enrijecer
ou burocratizar a filmagem. Fazer como os americanos, que
se comunicam no set através de memorando. Partir da
literatura do Marçal já é um ganho, mas
eu preciso incorporar o acaso. O invasor, por exemplo,
foi feito com muita informalidade na maneira como é
filmado, pois existe muita colaboração do fotógrafo,
do cenógrafo, ou da maquiadora. Consegui aliar inteligências
e sensibilidades, quando concedo espaço para os atores
improvisarem uma fala, por exemplo.
Z – O movimento dinamarquês
Dogma mostrou que é possível fazer filmes bons
e baratos. Como o uso de tecnologia digital ajuda a diminuir
os custos de produção?
B.B. – Filmamos em película
16 mm, para poder usar negativos mais sensíveis, aproveitando
a luz rarefeita. Daí, a gente telecinou em vídeo
de alta definição (HD), o que nos permitiu corrigir
todas as sub-exposições e dar eletronicamente
o tratamento visual que pretendíamos. Usamos o transfer,
um processo novo e mais caro do que a cinescopagem (o método
mais comum para passar do filme ao digital) e que era também
experimental. Foi o primeiro filme produzido assim, com apoio
do Estúdio Mega. Essa coisa de abraçar a tecnologia,
essa revolução que a imagem está sofrendo
com o uso digital. E é possível manipular muito
a imagem, a cor, as tonalidades, tirando o filme de um realismo,
dando uma elaboração maior de acabamento através
desse procedimento. Em todos os filmes que faço, além
do compromisso com as questões morais e éticas
que o filme levanta, busco caminhos alternativos e incorporar
isto na tecnologia utilizada no filme.
Z – Qual foi o custo de produção
de O invasor?
B. B. – Se você considerar
equipe paga, com encargos sociais, com tecnologia, câmera,
negativos, pós-produção, som e tal, é
um filme muito barato. A gente gastou R$ 700 mil em dinheiro.
Principalmente com a repercussão que ele tem conseguido,
com alcance internacional, ser exibido em salas de cinema
na França e na Inglaterra. Infelizmente aqui no Brasil
só vai ao cinema quem lê jornal. Porque não
tem como a gente entrar na publicidade, é muito caro.
Z – É possível
fazer cinema no Brasil sem o apoio da televisão?
B. B. – A televisão no Brasil
é muito medíocre porque ela está muito
preocupada com questões de contabilidade, de renda
publicitária, índices de audiência. Existem
ilhas como a TV Cultura de São Paulo, que inclusive
co-produziu Ação entre amigos. Mas
há muita falta de comprometimento ético, que
a televisão tem com a formação cultural,
com a educação, de perpetuar aquilo que é
bom, que é importante. Não só a tradição,
mas apontar novos caminhos. Mexer com a cabeça das
pessoas. Nós fazemos cinema sem a televisão
porque ela não dá palpite nenhum. Então
temos essa liberdade, sem censura ideológica, sem os
anunciantes decidirem como vai terminar o filme. Essa independência
eu prezo. Os filmes que faço são assistidos
por pouca gente, por causa da dificuldade de distribuição.
Quem acaba assistindo é uma intelectualidade, a elite
que tem acesso à informação. Mas as idéias
que estão neles são para o grande público,
mas infelizmente, não chega pela falta de apoio. A
Globo, por exemplo, exibiu Os matadores e obteve
uma boa audiência.
Z – Dá para criar uma
indústria cinematográfica no Brasil ?
B. B. – Já existe uma indústria
em pequena escala. Ela pode ser considerada no momento que
você tem relações comerciais, fornecedores,
mercado de trabalho, parque industrial, equipamentos. Mas
não concordo com a equação do cinema
brasileiro que acaba cogitando apenas quando foi feito, quanto
gastou e quantos milhões de pessoas assistiram. Para
mim o que interessa que muita gente viu, que a informação
alcance o público e não os resultados de arrecadação.
Z – Você acredita que exista
uma rivalidade de filmes de mercado contra filmes de arte?
A intenção do autor pode ser analisada quando
você vê o filme ?
B. B. – Acho que as duas variações
existem e devem coexistir. O cinema tem um poder de dar luz
a tendências e níveis de compreensão da
realidade, de informação, de iluminação,
de poesia. Eu sou exigente na hora de assistir cinema, eu
preciso dessa experiência mais completa, quase “sentir”
o filme.
Z – Durante a história
do cinema brasileiro é de se notar a presença
do Estado como uma força, senão motriz, mas
que impulsiona as artes. Qual seria a influência do
Estado dentro dos roteiros dos filmes?
B. B. – Na era Collor o cinema brasileiro
praticamente desapareceu. A retomada só aconteceu com
as leis do audiovisual que facilitaram a captação
de dinheiro. O problema é que o mecenas tem poder sobre
o que você produz. A lei do audiovisual é um
produto do liberalismo e pode gerar uma censura - ideológica
não política - porque você tem que convencer
um diretor de marketing de uma multinacional, que aquele filme
tem que ser feito. Eu nunca mudei nada de um filme para atender
a determinada empresa, mas conheço gente que já
fez. Aí você vê o papel do Estado, que
é dar um start no projeto. Tanto que a origem
dos meus filmes foi em concursos, em avaliações
de pessoas da classe. Meu primeiro filme, Os matadores,
tem grande incentivo do Ministério da Cultura, através
da Secretaria do Audiovisual, quando ganhou um prêmio
de resgate do cinema brasileiro. O mesmo se repete em Ação
entre amigos, que teve co-produção da TV
Cultura, e O invasor, que ganhou o prêmio Cinema
Brasil, um programa que financia fitas de baixo orçamento.
Porque se você só depender do mercado, vamos
ter muitos filmes estéreis, uma composição
de marketing, que junta adaptação de um livro
famoso com atores importantes e uma produção
de arte sofisticada. A receita do sucesso.
Z – Você acha que o cinema
brasileiro pode ter o destaque do cinema chinês ou dos
filmes iranianos?
B. B. – Com certeza absoluta. O
Invasor vai para a França e para a Inglaterra.
Na França a distribuidora alegou que eles vivem uma
situação de elite com a periferia muito semelhante.
Na periferia de Paris existe uma tensão social muito
forte lá por causa da presença dos árabes.
É adaptável, é uma leitura possível
para o parisiense. Mas o cinema latino-americano é
que está em alta. Filmes expressivos feitos pelos argentinos
e mexicanos formam uma cinematografia emergente nesse mercado.
Z – Qual cineasta que você
pode dizer que ele é um espelho daquilo que você
pensa ou acredita como cinema?
B. B. – Eu tenho uma grande admiração
pelo Carlos Reichenbach, pela sua postura ética, a
conduta dele, o respeito que ele tem, a liberdade e o entusiasmo
com cinema são fantásticos. Os filmes que ele
já fez como Anjos do Arrabalde, A mulher que inventou
o Amor, Filme Demência, Amor palavra prostituta
são um marco do cinema nacional. Também fui
influenciado por filmes como Bye Bye Brasil, do Cacá
Diegues, Deus e Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha,
além de Martin Scorcese e os irmão Coen , que
eu gosto muito.
Z – Qual é o ponto de
convergência entre seus três filmes? E no que
eles são iguais e no que eles são diferentes?
B. B. – Tem o Marçal, com
a literatura dele. Nos Matadores que mostra violência
do campo, da impunidade, Já no Ação
entre Amigos também tem um tributo a uma geração
que eu admiro, que projetou um futuro melhor para o país.
Fala do contexto histórico como movimento estudantil,
revolução sexual, da produção
cultural e da política nacional. O presente no Ação
entre Amigos é sem cor, contrastado, sombrio,
arcaico como uma rinha de galo. O Invasor é
um olhar sobre o contemporâneo. Principalmente em São
Paulo, que é a cidade onde eu vivo, pode se notar a
péssima distribuição de renda, a pobreza
das favelas e a violência chegando na casa dos ricos.
Junta a isso a ascensão de movimento social como o
rap e a uma juventude urbana alienada dá para pintar
parte do cenário do que é São Paulo hoje.
Z – Qual é a parte do
filme que você acha mais difícil e qual a que
você mais gosta ?
B. B. – Entre captação
de dinheiro, roteirização, produção
em si e distribuição a que eu mais gosto é
filmar. A filmagem é a parte mais legal que tem. A
mais difícil. Tanto lançar, distribuir o filme,
como arrumar a grana. São os dois grandes desafios
para quem quer fazer cinema no Brasil.
Z – Qual vai ser seu próximo
filme ?
B. B. – Meu próximo projeto
vai ser um filme, uma história de amor. Mas não
quero falar muito sobre isso. |