Domingo à noite eu estava sentado numa
fileira de cadeiras dispostas em um dos auditórios
do hotel Intercontinental, no centro financeiro de
São Paulo. Umas 200 pessoas esperavam o presidente
eleito, a maioria formada por representantes de governos
estrangeiros. À direita eu tinha um gringo
que não conseguia ficar sentado. Nervoso, olhava
o relógio e perguntava o tempo todo: viene
el presidente?
Si, si, viene el presidente, eu respondia.
Meu pensamento estava longe. Pensava: Ele vai levar
os bodes? Será que vai mesmo levar os bodes?
Lá na frente tinha um telão retransmitindo
a Globo: comentaristas informavam sobre a apuração.
Na minha esquerda estava minha mulher, enrolada numa
bandeira vermelha e branca. Ao lado dela, uma senhora
chorava com abundância. Uns 60 anos de idade,
bem vestida, advogada. Repetiu dezenas de vezes a
seguinte frase: “fomos muito discriminados,
fomos muito discriminados”. Depois contou que
é uma pessoa rica e que há 15 anos ficou
amiga de Marisa da Silva. Tudo mudou a partir de então.
Decidiu abraçar a causa operária. Virou
motivo de chacota e preconceito no bairro de elite
onde vive.
Todas as minhas amigas me abandonaram, mas agora nós
vencemos.
E chorava lagrimas que contivera durante décadas.
Duas fileiras adiante estava a mulher da América
Central, corpo todo marcado pelos combates na selva.
Guerra química aplicada pelos americanos, segundo
disse, e que deixou sua pele como a de um crocodilo.
Ao lado dela tinha um homem muito velho com um desenho
estranho no braço.
O que é esse desenho?
Não é desenho, filho. É um número.
Um dia fui um número no campo de concentração....
Pensei: tem aqui uma turminha bem heterogênea.
Mais a frente tava o Zé Dirceu, o Mercadante,
a Marta.
Quando a Benedita entrou o auditório quase
veio abaixo. Poucos minutos antes,na TV, Lula havia
dito que Benedita era a primeira negra a assumir um
cargo de governadora, e que isso era tão importante
quanto a abolição da escravatura. Disse
com as palavras dele, carregadas de emoção
e que não consigo reproduzir.
Viene el presidente? Si, viene!!
E eu com a idéia fixa: será que vai
levar os bodes?
Os pasteizinhos haviam terminado e só restavam
farelos nas bandejas quando o Lula entrou no auditório.
Seus olhos brilhavam de um jeito que nunca vou esquecer.
Todos levantaram, bateram palmas, cantaram, gritaram
e deram graças.
Falou 15 minutos. Não consegui prestar atenção.
Pensava nos bodes. Passei o segundo turno inteiro
pensando nos bodes do Lula.
Faltava um mês para a eleição
quando ele tocou no tema. Estava na chácara
que tem São Bernardo, sentado numa grande mesa
de madeira ao ar livre, a espera do almoço
dominical.
Fazia um sol de rachar e era um dos poucos dias de
folga do candidato. As 10 da manhã Marisa havia
decretado: é proibido falar de trabalho.
E ai, é claro, todos ficaram sem assunto.
As crianças jogavam bola no quintal, as mulheres
preparavam a salada, os homens ajudavam no fogão.
Música caipira no 3 em 1. Fiquei pensando se
era o mesmo 3 em 1 que o Collor havia dito que era
melhor que o dele. Deveria ser, pois a sonoridade
era péssima.
O Lula tava sentado na grande mesa. Dia de folga,
nem pra cozinha foi.
Sabe, tem uma coisa que às vezes eu fico imaginando
disse ele.
São esses meus bodes que eu tenho aqui na chácara,
essa meia dúzia de bodes que tão ali
naquele cercadinho.
Abriu os braços e fez um movimento amplo, como
a libertar os bodes do pequeno curral.
Eu fico pensando nesses bodes todos pastando naquele
gramado que tem em volta do Palácio do Planalto,
aquela graminha verde e tenra que tem em volta da
casa do presidente.
E riu da própria piada. Pegou um violão
que tinha em cima da mesa e caminhou até a
rede. Pediu para o filho trazer o outro violão
e ficaram lá, ensaiando uma moda.
Segunda feira passada falou na televisão ao
meio dia, na condição de presidente
eleito. São Paulo parou. As pessoas que caminhavam
no centro se amontoaram em frente aos bares para assistir
o pronunciamento. Os funcionários deixaram
de lado o que faziam e ligaram a televisão,
o rádio de pilhas. Os taxistas do ponto deixaram
a conversa de lado e aumentaram o volume do rádio.
O que está acontecendo?
É o Lula, o presidente. Está fazendo
o pronunciamento.
Não era a final da copa do mundo. Era o presidente
agradecendo ao povo.
Não falou dos bodes. Mas falou de união,
de respeito, de dignidade. Falou de esperança.
Sinto-me um bode libertado
|