21 de Março de 2025 Número 3 - Ano I - Edição fechada em 13 de Dezembro de 2002 Florianópolis-SC
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Por passar a maior parte de seu tempo viajando, o jornalista Ricardo Noblat quase não tem lido o Correio Braziliense, jornal do qual foi diretor de redação por oito anos até o último mês de outubro, quando se afastou do cargo. Mas do pouco que lê, confessa, não tem gostado. “O jornal perdeu o brilho, o vigor, a ousadia, o atrevimento. E não foi porque eu saí, foi porque o novo comando não está cobrando isso da redação”, disse Noblat, em entrevista coletiva no sítio Comunique-se, da qual o Zero participou. O jornalista, com 35 anos de profissão, deixou o jornal após sofrer censura prévia a pedido de Joaquim Roriz, governador do Distrito Federal - que foi reeleito. Agora, Noblat trabalha no diário baiano A Tarde, onde deverá ajudar a implantar um novo modelo de jornal. Disso ele entende: transformou o “chapa–branca” Correio Braziliense em um diário de referência nacional, vencedor de 156 prêmios de jornalismo e arte gráfica. Ele só espera ter, na Bahia, uma convivência menos conturbada com Antônio Carlos Magalhães, ao contrário da que teve com Roriz em Brasília.

Apesar de estar longe do CB, Noblat ainda sofre retaliações dos Diários Associados e de Joaquim Roriz. O último ataque foi a demissão de sua sobrinha do Diário de Pernambuco – que ele vê como uma reprimenda dos novos dirigentes do grupo. Noblat afirma também que “o pessoal de Roriz” vem oferecendo ao Jornal do Brasil um bom contrato de publicidade para as páginas que circulam só em Brasília. Em troca, o JB teria de demitir o filho de Noblat, estagiário da sucursal brasiliense. O jornalista não acredita que a direção do jornal vá se render à proposta. “Seria, no mínimo curioso, ver meu filho ser demitido ou forçado a sair do mesmo jornal onde trabalhei também por razões políticas. Não creio nisso”, diz.

Ainda no calor dos episódios de outubro, Noblat está lançando um livro que ensina justamente aquilo que o fez deixar o cargo no Correio Braziliense: o exercício do bom jornalismo. A arte de fazer um jornal diário, recém-lançado nas principais capitais do país, é o resultado da experiência de Noblat como repórter, editor, articulista e colunista político, que lhe permite conhecer todos os meandros da imprensa diária. Além de abordar técnicas de apuração e redação de notícias e questões éticas e conjunturais do jornalismo, o livro tem um capítulo dedicado às reformas editoriais e gráficas feitas no CB. Evidentemente, o livro não traz o episódio da censura, mas reproduz algumas das primeiras páginas mais marcantes do jornal – com suas inovações gráficas (infografia, cores, fotos valorizadas, design e tipografia) e editoriais.

Apesar de o livro ter sido escrito por encomenda, era uma idéia que Noblat acalentava já há algum tempo. Elaborado entre os meses de maio e julho, A arte de fazer um jornal diário serve para consolidar o pensamento de que os jornais precisam de mudanças radicais, se quiserem competir com a mídia eletrônica. “Toda crise pode ser benéfica. Se não estivéssemos no meio de uma, talvez não fosse necessário repensar os jornais”, explica Noblat. Para ele, somente um jornal ético, independente e partidário da sociedade pode atrair e manter leitores. “Trocar a independência por mais publicidade significa a curto ou médio prazo perder leitores - e por tabela, publicidade.” Sobre os gastos de Roriz com publicidade no Correio Braziliense, Noblat acredita que o governador passará a investir bem mais a partir de agora – e pagar o que deve ao jornal há meses.

A arte de fazer um jornal diário é dividido em oito capítulos que tratam, de maneira simples, direta e perspicaz a crise que atinge os jornais de todo o mundo, a ética e os princípios do jornalismo, a técnica-arte de apurar e escrever as notícias, o jornalismo de antecipação e interpretação. Além disso, traz um capítulo final listando as datas mais importantes da imprensa mundial. Voltado especialmente para estudantes e jornalistas, o livro é o primeiro da série Comunicação da editora Contexto. A partir do ano que vem, serão lançados mais cinco livros sobre jornalismo.

Mariana Faraco


"No início do novo milênio a ninguém era mais assegurado o direito de ir e de vir livremente nas maiores cidades brasileiras, como manda a Constituição. Por que então o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, imaginou que poderia escapar ileso da incursão a uma favela carioca onde pretendia filmar às escondidas a exploração sexual de menores em um baile promovido por uma organização criminosa?
Certamente, Tim Lopes foi vítima do que o escritor colombiano Gabriel García Márquez definiu como “uma paixão insaciável” pelo jornalismo. Mas não só. A omissão do Estado, incapaz de garantir a segurança dos cidadãos, empunhou a espada dos traficantes de drogas que retalhou o corpo de Tim. Quem lhe aplicou o golpe fatal, contudo, foi um conceito de jornalismo que degrada a profissão e pode até matar jornalistas.
Não existe liberdade absoluta. Como não existe verdade absoluta. Os crentes enxergam Deus como uma verdade inquestionável; os ateus, como uma invenção das religiões para controlar os homens e impor-lhes certos limites. O direito de uma sociedade à livre informação é relativo; como de resto, tudo na vida. É descabido, pois, que empresas jornalísticas exponham a vida dos seus profissionais a riscos temerários.
Tim Lopes se expôs ao risco de morrer porque quis, porque foi autorizado por seus chefes a fazê-lo e também porque grassa cada vez mais por toda parte um tipo de jornalismo que não distingue o que interessa ao público do que é de interesse público.
Sobretudo na TV, notícia e espetáculo se confundem. Empregam-se técnicas de show para construir “a realidade”. E a fantasia que daí emerge garante audiência.
Era de interesse público a denúncia de que menores são explorados sexualmente por líderes do narcotráfico nas favelas do Rio. A forma de documentá-la, na medida em que poderia custar a vida do seu autor, é que foi errada e irresponsável. Tim Lopes muniu-se de uma minicâmera oculta, subiu sozinho o morro e acabou preso, cruelmente torturado e morto. Seu corpo foi incinerado em meio a pneus.
O que interessa ao público nem sempre é de interesse público. Infelizmente, estimular os baixos instintos do ser humano, por exemplo, interessa a uma expressiva fatia do público. Aumenta as vendas de um jornal. E amplia a audiência de uma emissora de televisão. Mas proceder assim é condenável porque em vez de contribuir para a elevação dos padrões morais da sociedade, o jornalismo os rebaixa.
Há ainda na tragédia protagonizada por Tim Lopes um outro aspecto que cobra uma reflexão urgente e profunda dos jornalistas e dos seus patrões. Porque sou jornalista e porque vivemos em uma democracia estou liberado para valer-me de qualquer recurso que assegure à sociedade o direito de tudo saber? Posso roubar documentos, mentir, gravar conversas sem autorização, violar leis?
Onde está escrito que disponho de tais prerrogativas? Quem me deu imunidade para rasgar códigos que regulam o comportamento das demais pessoas? Tenho dois filhos que estudam jornalismo. Uma vez formados, eles poderão enganar seus interlocutores para extrair informações e depois traí-los. Minha filha, que se formará em pedagogia, porém, deverá ensinar a seus futuros alunos que é errado mentir e trair.
A jornalista Janet Malcolm, autora do livro O Jornalista e o Assassino, escreveu palavras muito duras a respeito dos métodos que a maioria de nós utiliza na caça à informação:
Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. (...)
Os jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras. (...) Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do “direito do público de saber”; os menos talentosos falam sobre a Arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida.
Se quisermos ser mais respeitados e servir melhor ao público, teremos de repensar com seriedade os fundamentos do jornalismo. Seja para resgatar os que nos pareçam mais sadios e utópicos, seja para nos livrar de sua contrafação imposta pela realidade perversa de um mercado extremamente competitivo e predador.
Depois de uma vida dedicada acima de tudo a emprestar sua voz aos que não costumam ser ouvidos, o jornalista Tim Lopes pode afinal dormir em paz. Nós, ao contrário, temos de acordar.
"

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