Por passar a maior parte de seu tempo
viajando, o jornalista Ricardo Noblat quase não
tem lido o Correio Braziliense, jornal do qual
foi diretor de redação por oito anos até
o último mês de outubro, quando se afastou
do cargo. Mas do pouco que lê, confessa, não
tem gostado. “O jornal perdeu o brilho, o vigor,
a ousadia, o atrevimento. E não foi porque eu saí,
foi porque o novo comando não está cobrando
isso da redação”, disse Noblat, em
entrevista coletiva no sítio Comunique-se,
da qual o Zero participou. O jornalista,
com 35 anos de profissão, deixou o jornal após
sofrer censura prévia a pedido de Joaquim Roriz,
governador do Distrito Federal - que foi reeleito. Agora,
Noblat trabalha no diário baiano A Tarde,
onde deverá ajudar a implantar um novo modelo de
jornal. Disso ele entende: transformou o “chapa–branca”
Correio Braziliense em um diário de referência
nacional, vencedor de 156 prêmios de jornalismo
e arte gráfica. Ele só espera ter, na Bahia,
uma convivência menos conturbada com Antônio
Carlos Magalhães, ao contrário da que teve
com Roriz em Brasília.
Apesar de estar longe do CB, Noblat ainda sofre
retaliações dos Diários Associados
e de Joaquim Roriz. O último ataque foi a demissão
de sua sobrinha do Diário de Pernambuco
– que ele vê como uma reprimenda dos novos
dirigentes do grupo. Noblat afirma também que “o
pessoal de Roriz” vem oferecendo ao Jornal do
Brasil um bom contrato de publicidade para as páginas
que circulam só em Brasília. Em troca, o
JB teria de demitir o filho de Noblat, estagiário
da sucursal brasiliense. O jornalista não acredita
que a direção do jornal vá se render
à proposta. “Seria, no mínimo curioso,
ver meu filho ser demitido ou forçado a sair do
mesmo jornal onde trabalhei também por razões
políticas. Não creio nisso”, diz.
Ainda no calor dos episódios de outubro, Noblat
está lançando um livro que ensina justamente
aquilo que o fez deixar o cargo no Correio Braziliense:
o exercício do bom jornalismo. A arte de fazer
um jornal diário, recém-lançado
nas principais capitais do país, é o resultado
da experiência de Noblat como repórter, editor,
articulista e colunista político, que lhe permite
conhecer todos os meandros da imprensa diária.
Além de abordar técnicas de apuração
e redação de notícias e questões
éticas e conjunturais do jornalismo, o livro tem
um capítulo dedicado às reformas editoriais
e gráficas feitas no CB. Evidentemente,
o livro não traz o episódio da censura,
mas reproduz algumas das primeiras páginas mais
marcantes do jornal – com suas inovações
gráficas (infografia, cores, fotos valorizadas,
design e tipografia) e editoriais.
Apesar de o livro ter sido escrito por encomenda, era
uma idéia que Noblat acalentava já há
algum tempo. Elaborado entre os meses de maio e julho,
A arte de fazer um jornal diário serve
para consolidar o pensamento de que os jornais precisam
de mudanças radicais, se quiserem competir com
a mídia eletrônica. “Toda crise pode
ser benéfica. Se não estivéssemos
no meio de uma, talvez não fosse necessário
repensar os jornais”, explica Noblat. Para ele,
somente um jornal ético, independente e partidário
da sociedade pode atrair e manter leitores. “Trocar
a independência por mais publicidade significa a
curto ou médio prazo perder leitores - e por tabela,
publicidade.” Sobre os gastos de Roriz com publicidade
no Correio Braziliense, Noblat acredita que o
governador passará a investir bem mais a partir
de agora – e pagar o que deve ao jornal há
meses.
A arte de fazer um jornal diário é
dividido em oito capítulos que tratam, de maneira
simples, direta e perspicaz a crise que atinge os jornais
de todo o mundo, a ética e os princípios
do jornalismo, a técnica-arte de apurar e escrever
as notícias, o jornalismo de antecipação
e interpretação. Além disso, traz
um capítulo final listando as datas mais importantes
da imprensa mundial. Voltado especialmente para estudantes
e jornalistas, o livro é o primeiro da série
Comunicação da editora Contexto.
A partir do ano que vem, serão lançados
mais cinco livros sobre jornalismo.
Mariana Faraco
"No início do novo
milênio a ninguém era mais assegurado o direito
de ir e de vir livremente nas maiores cidades brasileiras,
como manda a Constituição. Por que então
o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, imaginou que poderia
escapar ileso da incursão a uma favela carioca
onde pretendia filmar às escondidas a exploração
sexual de menores em um baile promovido por uma organização
criminosa?
Certamente, Tim Lopes foi vítima do que o escritor
colombiano Gabriel García Márquez definiu
como “uma paixão insaciável”
pelo jornalismo. Mas não só. A omissão
do Estado, incapaz de garantir a segurança dos
cidadãos, empunhou a espada dos traficantes de
drogas que retalhou o corpo de Tim. Quem lhe aplicou o
golpe fatal, contudo, foi um conceito de jornalismo que
degrada a profissão e pode até matar jornalistas.
Não existe liberdade absoluta. Como não
existe verdade absoluta. Os crentes enxergam Deus como
uma verdade inquestionável; os ateus, como uma
invenção das religiões para controlar
os homens e impor-lhes certos limites. O direito de uma
sociedade à livre informação é
relativo; como de resto, tudo na vida. É descabido,
pois, que empresas jornalísticas exponham a vida
dos seus profissionais a riscos temerários.
Tim Lopes se expôs ao risco de morrer porque quis,
porque foi autorizado por seus chefes a fazê-lo
e também porque grassa cada vez mais por toda parte
um tipo de jornalismo que não distingue o que interessa
ao público do que é de interesse público.
Sobretudo na TV, notícia e espetáculo se
confundem. Empregam-se técnicas de show para construir
“a realidade”. E a fantasia que daí
emerge garante audiência.
Era de interesse público a denúncia de que
menores são explorados sexualmente por líderes
do narcotráfico nas favelas do Rio. A forma de
documentá-la, na medida em que poderia custar a
vida do seu autor, é que foi errada e irresponsável.
Tim Lopes muniu-se de uma minicâmera oculta, subiu
sozinho o morro e acabou preso, cruelmente torturado e
morto. Seu corpo foi incinerado em meio a pneus.
O que interessa ao público nem sempre é
de interesse público. Infelizmente, estimular os
baixos instintos do ser humano, por exemplo, interessa
a uma expressiva fatia do público. Aumenta as vendas
de um jornal. E amplia a audiência de uma emissora
de televisão. Mas proceder assim é condenável
porque em vez de contribuir para a elevação
dos padrões morais da sociedade, o jornalismo os
rebaixa.
Há ainda na tragédia protagonizada por Tim
Lopes um outro aspecto que cobra uma reflexão urgente
e profunda dos jornalistas e dos seus patrões.
Porque sou jornalista e porque vivemos em uma democracia
estou liberado para valer-me de qualquer recurso que assegure
à sociedade o direito de tudo saber? Posso roubar
documentos, mentir, gravar conversas sem autorização,
violar leis?
Onde está escrito que disponho de tais prerrogativas?
Quem me deu imunidade para rasgar códigos que regulam
o comportamento das demais pessoas? Tenho dois filhos
que estudam jornalismo. Uma vez formados, eles poderão
enganar seus interlocutores para extrair informações
e depois traí-los. Minha filha, que se formará
em pedagogia, porém, deverá ensinar a seus
futuros alunos que é errado mentir e trair.
A jornalista Janet Malcolm, autora do livro O Jornalista
e o Assassino, escreveu palavras muito duras a respeito
dos métodos que a maioria de nós utiliza
na caça à informação:
Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso
ou cheio de si para perceber o que está acontecendo
sabe que o que faz é moralmente indefensável.
Ele é uma espécie de confidente que se nutre
da vaidade, da ignorância ou da solidão das
pessoas. (...)
Os jornalistas justificam a própria traição
de várias maneiras. (...) Os mais pomposos falam
de liberdade de expressão e do “direito do
público de saber”; os menos talentosos falam
sobre a Arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar
a vida.
Se quisermos ser mais respeitados e servir melhor ao público,
teremos de repensar com seriedade os fundamentos do jornalismo.
Seja para resgatar os que nos pareçam mais sadios
e utópicos, seja para nos livrar de sua contrafação
imposta pela realidade perversa de um mercado extremamente
competitivo e predador.
Depois de uma vida dedicada acima de tudo a emprestar
sua voz aos que não costumam ser ouvidos, o jornalista
Tim Lopes pode afinal dormir em paz. Nós, ao contrário,
temos de acordar."