Mestre
em engenharia de transportes, Névio Carvalho foi
diretor do Núcleo de Transportes de Florianópolis
durante a gestão do prefeito Sérgio Grando
(PPS), entre 1993 e 1996 - e participou recentemente da
elaboração do Sistema Integrado de Transporte
da região metropolitana de Porto Alegre. Nesta
entrevista Carvalho explica o funcionamento da primeira
proposta de Sistema Integrado de Transporte Coletivo Florianópolis,
além de analisar o sistema substitutivo proposto
pela gestão da prefeita Ângela Amin (PPB).
Entre outras criticas, chama atenção para
o fato de que os terminais de ônibus foram construídos
justamente nas áreas de fronteira de atuação
de cada empresa de ônibus. Com isso, garante que
o objetivo era possibilitar que cada empresa fique responsável
pela administração de um destes terminais.
Zero - Como começou
a elaboração do Sistema Integrado de Transporte
Coletivo?
Névio Carvalho -
No início de 1993 realizamos uma série
de pesquisas de campo em todas regiões da cidade
com o objetivo de identificar qual era o desejo de deslocamento
do usuário. É uma pesquisa muito cara,
que não foi repetida pela gestão atual.
No final de 1994 já tínhamos estes dados.
Organizamos então uma série de seminários
com o Sindicato dos Motoristas, comunidade, técnicos
da área e empresas de ônibus para discussão
do projeto. Depois de aprovado, começamos a elaboração
de algumas etapas.
Z - Como ele iria funcionar?
NC - A Ilha de Santa Catarina
teria quatro terminais, um em cada ponto geográfico
da cidade, além do terminal central, próximo
à Rodoviária. A idéia era que cada
terminal concentrasse as linhas dos bairros. A partir
dali o usuário teria três opções
de deslocamento: Uma linha expressa direta até
o centro da cidade; outra que faria a ligação
norte-sul, parando nos terminais. E a última
nos moldes das linhas atuais, parando para recolher
as os usuários nos pontos e passando pela Agronômica
e Mauro Ramos. Os terminais se localizariam em cinco
locais: no norte da Ilha, próximo à entrada
para Ratones; no Itacorubi, em frente ao aterro da Comcap;
no Saco dos Limões e no Rio Tavares. O terminal
de Ratones seria exatamente no local onde todas as linhas
do norte da Ilha se encontram. O usuário de Daniela,
Canasvieiras, Ponta das Canas, por exemplo, teriam uma
freqüência muito maior de horários
que a de hoje, já que o ônibus viria do
bairro até o terminal, retornando a partir dali.
Com os outros a lógica seria a mesma. O terminal
central funcionaria no mesmo molde com está hoje,
ao lado do terminal rodoviário Rita Maria, para
facilitar o trânsito das pessoas que chegam de
outras cidades. Ali elas não precisam pegar táxi
ou qualquer outro tipo de transporte para chegar ao
terminal urbano.
Z - O que mudou no sistema proposto
pela atual gestão?
NC - Hoje existem quatro
tarifas na cidade, e o novo sistema não prevê
tarifa única, como o nosso. Pela proposta original
de 1993, as pessoas poderiam se deslocar para qualquer
ponto da cidade pagando uma tarifa, através de
um cartão magnético. Quem fizesse transbordo
(descer em terminal para trocar de ônibus) teria
direito a 90 minutos para pegar outro ônibus sem
pagar uma nova passagem. A restrição seria
que o usuário não poderia pegar o segundo
ônibus para o mesmo sentido que veio. Outra diferença
é que na configuração atual, eles
mudaram a localização da maior parte dos
terminais. Em relação ao norte da Ilha,
puxaram de Ratones para Ingleses um, e incluíram
outro em Santo Antônio de Lisboa. Na minha avaliação,
para que um fique para a empresa Canasvieiras, e outro
para a Transol. Ele está localizado justamente
na área de limite entre a atuação
das duas empresas. Só vão existir linhas
daquelas empresas em cada terminal. O terminal do Itacorubi
foi deslocado para o bairro da Trindade. Na minha opinião
não tem porque concentrar pessoas ali.
Z - Por quê a localização
dos terminais foi alterada?
NC - Porque as empresas de ônibus sempre
foram contra a implantação do projeto
nos moldes como estava sendo proposto. Cada uma queria
ter um terminal próprio, para não misturar
a demanda. É a concepção errada
que as empresas de transporte tem na cidade, de achar
que cada uma tem que ter o seu próprio mercado.
E outras empresas não poderiam se meter no mercado
delas. Nosso projeto mudaria radicalmente isso, já
que seria feito um consórcio entre as empresas
para operarem as linhas, e não cada uma ter seu
próprio território.
Z - Que prejuízo a população
pode ter com esta nova distribuição dos
terminais?
NC - Aí é que entra a questão
da tarifa, porque não vai ter tarifa única
como era o projeto original. Cada empresa vai ficar
com sua própria tarifa. Cada uma fica em uma
área determinada. No nosso projeto as empresas
seriam consorciadas para operar nas linhas entre os
terminais. Teria uma câmara de compensação
para que a tarifa fosse única. Outro problema
é que a as empresas de ônibus formaram
um consórcio e venceram a licitação
municipal para a construção dos terminais,
formando a Cotisa. Na minha avaliação,
o terminal de ônibus administrado pelas próprias
empresas já é complicado porque toda a
questão de controle da infra-estrutura urbana,
deveria ser feito pelo poder público, que tem
condições de definir uma melhor utilização
para a área. No caso dos terminais, o que acontece
é que o controle público sobre o sistema
vai ser muito limitado. Por exemplo, quando tiver que
mudar o itinerário de uma linha ou o próprio
layout do terminal, o poder público
fica com poder restrito.
Z - O fato de as empresas terem
que pagar uma taxa para Cotisa pode encarecer o preço
da passagem?
NC - Sem dúvida. Vai ter uma taxa de utilização
dos terminais. O lucro também entra em toda exploração
comercial que será feita pelas empresas de ônibus,
através da Cotisa, em relação aos
pontos de lanches, lojas, enfim...O nosso projeto tinha
outras questões acopladas à questão
do terminal. Nossa idéia era colocar padaria,
farmácia, cestão do povo do lado. Com
estas receitas o poder público manteria e pagaria
os terminais.
Z - A Cotisa coloca que seria
financeiramente inviável possibilitar serviços
como estes em torno dos terminais...
NC - É uma idéia de lucro imediato.
São empresas. Por isso que é um erro deixar
empresas administrar terminais. Empresários de
ônibus devem prestar serviços para a prefeitura,
ela que deve gerenciar o sistema.
Z - Na sua opinião, porque
a prefeitura possibilitou esta concessão?
NC - É uma concepção de
política para o sistema de transporte. Eles,
possivelmente, avaliam que o setor privado funciona
melhor que o setor público. Eu particularmente
entendo, e nós trabalhamos com isto na época,
que quem deve gerenciar o sistema de transporte é
o poder público e não as empresas.
Z - A justificativa que a prefeitura
deu em relação à concessão
para a Cotisa, foi que o município não
tinha dinheiro para construir os terminais...
NC - O mesmo financiamento do Bndes poderia ir
para a prefeitura, que poderia explorar área
em torno do terminal. E ficou meio estranho, porque
os terrenos são públicos, né? Tudo
foi desapropriado pela prefeitura, que praticamente
entregou os terrenos para as empresas. A idéia
era ter uma grande área de estacionamento para
as pessoas utilizarem os carros apenas até o
terminal mais próximo. Quando estariam voltando
para casa, comprariam pão, leite, verduras, remédios.
Enfim, era toda uma lógica de abastecimento casada
com o transporte.
Z - A prefeitura alega que a tarifa única
não pode ser implantada porque oneraria as pessoas
que utilizam ônibus na região central.
Como ficaria no antigo projeto?
NC - Aí a questão é de
concepção novamente. Eu, particularmente,
defendo a tarifa única porque não é
justo que as pessoas de uma cidade sejam prejudicadas
porque moram em regiões mais afastadas do centro.
Elas moram na mesma cidade. Inclusive, no interior e
sul da Ilha é onde existem as comunidades mais
antigas em termos de colonização. Na nossa
concepção de transporte todos teriam os
mesmos direitos no transporte coletivo e para isto era
preciso oferecer o necessário sem onerar quem
mora mais longe da região central.
.
Z - E quem mora no centro, não
pagaria mais caro que os outros, considerando o trajeto?
NC - Não, pelo seguinte: na nossa época,
a concentração de pessoas que moravam
na área central da cidade, patamar 2, era 65%
da população. Então, obviamente,
que elas pagariam um pouco mais, mas seria muito pouco.
Na época, pelos cálculos, a diferença
não chegava a 5%. Em compensação,
35% das pessoas pagariam 50% a menos. O que as pessoas
que moram na região central pagariam a mais seria
muito pouco em relação ao ganho de quem
mora mais longe. Se for considerar os aumentos de passagens
destes últimos cinco anos, acima da inflação
e dos aumentos de salários dos trabalhadores,
estaria largamente compensado. E é uma questão
de justiça social. Quem mora no norte ou sul
da ilha não tem tanta oportunidade de trabalho
e algumas opções de lazer do que quem
mora na região central. Não é justo
que elas paguem mais por morar mais longe. Nós
fizemos discussões a respeito da tarifa única
e destes 5% de aumento para a região central.
A comunidade aceitaria tranqüilamente o fato da
tarifa única. Além da simplicidade que
proporciona uma só tarifa, onde tu usas o cartão
magnético para todas linhas da cidade.
Z - Neste sistema novo, o que
vai mudar em relação à tarifa?
NC - Não muda muita coisa, porque o usuário
vai continuar pagando tarifas diferentes. A integração
será física e não tarifária.
O que vai mudar é que os usuários terão
mais conforto nos terminais, possivelmente as empresas
vão adquirir uma frota mais nova. Agora, quem
utiliza dois ônibus, vai continuar pagando duas
tarifas diferentes. Na minha avaliação,
só tem sentido fazer sistema integrado se o usuário
ganha alguma coisa. Neste sistema ele continua tendo
dificuldades para se locomover.
Z - Como funcionaria a câmara
de compensação?
NC - A câmara de compensação
é um fundo de equilíbrio entre as linhas
deficitárias e as linhas superavitárias,
destinado às empresas. Cada linha tem um custo
diferente. A despesa do ônibus do Expresso UFSC,
por exemplo, é menor, por quilômetro rodado,
do que a do trajeto em regiões distantes do centro.
Na gestão anterior à nossa, os cálculos
eram feitos pela prefeitura, que estabelecia o custo
por quilômetro rodado de cada empresa. As empresas
eram pagas de acordo com o serviço prestado por
cada uma delas. Quem arrecadava mais que aquele custo,
repassava semanalmente o valor para a câmara de
compensação, e quem arrecadava menos,
recebia. As empresas que fazem linhas onde há
menor número de passageiros por quilômetro
eram compensadas. Ele foi extinto, porque quando assumimos
havia um déficit de aproximadamente R$ dois milhões,
formado por questões políticas e falta
de informação sobre a demanda. As informações
que as próprias empresas repassavam eram insuficientes.
Pagamos o déficit em 1993 e depois começamos
a fazer modificações no sistema de transporte.
Com a catraca eletrônica, a câmara de compensação
seria complemente viável. Teria as informações
sobre o número de passageiros em tempo real,
o quadro de horários seria definido pelo poder
público, que tem como estabelecer a quilometragem
de cada empresa sem nenhum erro. Com a tarifa única
seria mais fácil ainda, porque só importa
o número de passageiros, e não o trajeto.
Sendo o terminal do poder público, ficaria mais
fácil esta fiscalização.
Z - A implantação
da catraca eletrônica é muito criticada
pelo perigo de perda dos empregos dos cobradores. Como
ficava esta questão no antigo projeto?
NC - A idéia era dar um novo perfil ao
cobrador, e não acabar com estes empregos. Eles
seriam uma fonte de informação e orientação
ao usuário, e seriam preparados para isto. Não
se excluiria o cobrador do ônibus. Até
por questão de segurança não é
bom o motorista ficar sozinho no carro. A gente sabia,
na época, que não era interessante acabar
com estes empregos. Foi feito inclusive um acordo coletivo
na época com o sindicato.
Z - E a frota, seria diminuída?
NC - Ao todo, não, a frota nos bairros
realmente seria menor, porque o percurso também
seria diminuído e o mesmo ônibus teria
condições de fazer várias viagens,
já que eles não iriam todos para o centro.
Mas haveria uma maior demanda para os trajetos entre
terminais e os expressos, que necessitariam de maior
número de ônibus, já que os trajetos
são mais longos.
Z - Porque este sistema de 1993 não foi
implantado?
NC - Por várias questões. Em
93/94 o Bndes não financiava o setor público,
apenas o setor privado. E nós não conseguimos
viabilizar recursos internos da prefeitura para a construção
dos terminais. A partir de 1998 é que o Bndes
passou a financiar o setor público também.
Outras questões eram os problemas internos. O
IPUF ( Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis)
demorou muito tempo para concluir o projeto dos terminais.
A estrutura que estava disponível também
era precária. A equipe era muito pequena e, com
formação na área de transporte
havia eu, que era o gerente na época, e mais
uma funcionária. O restante não tinha
nível superior.
Z - Qual era o papel do IPUF?
NC - O IPUF era um órgão à
parte dentro da prefeitura. Uma questão essencial
do nosso projeto era unificar trânsito e transporte.
Para mim, isso era fundamental. Antes de sair, entreguei
um relatório para o atual presidente do Núcleo
de Transportes, D’Acampora, dizendo exatamente
isto, e que era fundamental tentar conseguir. Era comum,
por exemplo, o IPUF mudar a mão ou trancar uma
rua e nem informar o Núcleo de Transportes. Hoje
quem gerencia o transporte coletivo é o Núcleo
de Transportes, ligado diretamente ao gabinete do prefeito.
O IPUF gerencia o trânsito, vias, sinalização,
etc. E não funciona separado. Florianópolis
talvez seja a única capital onde é separado
trânsito de transporte. Tem que priorizar em uma
cidade o transporte coletivo ao individual. Isto do
ponto de vista de políticas de transporte é
consensual. E só se consegue isto trabalhando
os dois ao mesmo tempo. O IPUF deve pensar no planejamento
urbano e não gerenciar vias, sinalização,
semáforos.
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