Número 3 - Ano I - Edição fechada em 13 de Dezembro de 2002 Florianópolis-SC
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Carvalho: empresas tem que operar as linhas e não cada uma ter seu próprio território / Foto: Wagner Maia - ZeroMestre em engenharia de transportes, Névio Carvalho foi diretor do Núcleo de Transportes de Florianópolis durante a gestão do prefeito Sérgio Grando (PPS), entre 1993 e 1996 - e participou recentemente da elaboração do Sistema Integrado de Transporte da região metropolitana de Porto Alegre. Nesta entrevista Carvalho explica o funcionamento da primeira proposta de Sistema Integrado de Transporte Coletivo Florianópolis, além de analisar o sistema substitutivo proposto pela gestão da prefeita Ângela Amin (PPB). Entre outras criticas, chama atenção para o fato de que os terminais de ônibus foram construídos justamente nas áreas de fronteira de atuação de cada empresa de ônibus. Com isso, garante que o objetivo era possibilitar que cada empresa fique responsável pela administração de um destes terminais.

Zero - Como começou a elaboração do Sistema Integrado de Transporte Coletivo?
Névio Carvalho - No início de 1993 realizamos uma série de pesquisas de campo em todas regiões da cidade com o objetivo de identificar qual era o desejo de deslocamento do usuário. É uma pesquisa muito cara, que não foi repetida pela gestão atual. No final de 1994 já tínhamos estes dados. Organizamos então uma série de seminários com o Sindicato dos Motoristas, comunidade, técnicos da área e empresas de ônibus para discussão do projeto. Depois de aprovado, começamos a elaboração de algumas etapas.

Z - Como ele iria funcionar?
NC - A Ilha de Santa Catarina teria quatro terminais, um em cada ponto geográfico da cidade, além do terminal central, próximo à Rodoviária. A idéia era que cada terminal concentrasse as linhas dos bairros. A partir dali o usuário teria três opções de deslocamento: Uma linha expressa direta até o centro da cidade; outra que faria a ligação norte-sul, parando nos terminais. E a última nos moldes das linhas atuais, parando para recolher as os usuários nos pontos e passando pela Agronômica e Mauro Ramos. Os terminais se localizariam em cinco locais: no norte da Ilha, próximo à entrada para Ratones; no Itacorubi, em frente ao aterro da Comcap; no Saco dos Limões e no Rio Tavares. O terminal de Ratones seria exatamente no local onde todas as linhas do norte da Ilha se encontram. O usuário de Daniela, Canasvieiras, Ponta das Canas, por exemplo, teriam uma freqüência muito maior de horários que a de hoje, já que o ônibus viria do bairro até o terminal, retornando a partir dali. Com os outros a lógica seria a mesma. O terminal central funcionaria no mesmo molde com está hoje, ao lado do terminal rodoviário Rita Maria, para facilitar o trânsito das pessoas que chegam de outras cidades. Ali elas não precisam pegar táxi ou qualquer outro tipo de transporte para chegar ao terminal urbano.

Z - O que mudou no sistema proposto pela atual gestão?
NC - Hoje existem quatro tarifas na cidade, e o novo sistema não prevê tarifa única, como o nosso. Pela proposta original de 1993, as pessoas poderiam se deslocar para qualquer ponto da cidade pagando uma tarifa, através de um cartão magnético. Quem fizesse transbordo (descer em terminal para trocar de ônibus) teria direito a 90 minutos para pegar outro ônibus sem pagar uma nova passagem. A restrição seria que o usuário não poderia pegar o segundo ônibus para o mesmo sentido que veio. Outra diferença é que na configuração atual, eles mudaram a localização da maior parte dos terminais. Em relação ao norte da Ilha, puxaram de Ratones para Ingleses um, e incluíram outro em Santo Antônio de Lisboa. Na minha avaliação, para que um fique para a empresa Canasvieiras, e outro para a Transol. Ele está localizado justamente na área de limite entre a atuação das duas empresas. Só vão existir linhas daquelas empresas em cada terminal. O terminal do Itacorubi foi deslocado para o bairro da Trindade. Na minha opinião não tem porque concentrar pessoas ali.

Z - Por quê a localização dos terminais foi alterada?
NC
- Porque as empresas de ônibus sempre foram contra a implantação do projeto nos moldes como estava sendo proposto. Cada uma queria ter um terminal próprio, para não misturar a demanda. É a concepção errada que as empresas de transporte tem na cidade, de achar que cada uma tem que ter o seu próprio mercado. E outras empresas não poderiam se meter no mercado delas. Nosso projeto mudaria radicalmente isso, já que seria feito um consórcio entre as empresas para operarem as linhas, e não cada uma ter seu próprio território.

Z - Que prejuízo a população pode ter com esta nova distribuição dos terminais?
NC
- Aí é que entra a questão da tarifa, porque não vai ter tarifa única como era o projeto original. Cada empresa vai ficar com sua própria tarifa. Cada uma fica em uma área determinada. No nosso projeto as empresas seriam consorciadas para operar nas linhas entre os terminais. Teria uma câmara de compensação para que a tarifa fosse única. Outro problema é que a as empresas de ônibus formaram um consórcio e venceram a licitação municipal para a construção dos terminais, formando a Cotisa. Na  minha avaliação, o terminal de ônibus administrado pelas próprias empresas já é complicado porque toda a questão de controle da infra-estrutura urbana, deveria ser feito pelo poder público, que tem condições de definir uma melhor utilização para a área. No caso dos terminais, o que acontece é que o controle público sobre o sistema vai ser muito limitado. Por exemplo, quando tiver que mudar o itinerário de uma linha ou o próprio layout do terminal, o poder público fica com poder restrito.

Z - O fato de as empresas terem que pagar uma taxa para Cotisa pode encarecer o preço da passagem?
NC
- Sem dúvida. Vai ter uma taxa de utilização dos terminais. O lucro também entra em toda exploração comercial que será feita pelas empresas de ônibus, através da Cotisa, em relação aos pontos de lanches, lojas, enfim...O nosso projeto tinha outras questões acopladas à questão do terminal. Nossa idéia era colocar padaria, farmácia, cestão do povo do lado. Com estas receitas o poder público manteria e pagaria os terminais.

Z - A Cotisa coloca que seria financeiramente inviável possibilitar serviços como estes em torno dos terminais...
NC
- É uma idéia de lucro imediato. São empresas. Por isso que é um erro deixar empresas administrar terminais. Empresários de ônibus devem prestar serviços para a prefeitura, ela que deve gerenciar o sistema.

Z - Na sua opinião, porque a prefeitura possibilitou esta concessão?
NC
- É uma concepção de política para o sistema de transporte. Eles, possivelmente, avaliam que o setor privado funciona melhor que o setor público. Eu particularmente entendo, e nós trabalhamos com isto na época, que quem deve gerenciar o sistema de transporte é o poder público e não as empresas.

Z - A justificativa que a prefeitura deu em relação à concessão para a Cotisa, foi que o município não tinha dinheiro para construir os terminais...
NC
- O mesmo financiamento do Bndes poderia ir para a prefeitura, que poderia explorar área em torno do terminal. E ficou meio estranho, porque os terrenos são públicos, né? Tudo foi desapropriado pela prefeitura, que praticamente entregou os terrenos para as empresas. A idéia era ter uma grande área de estacionamento para as pessoas utilizarem os carros apenas até o terminal mais próximo. Quando estariam voltando para casa, comprariam pão, leite, verduras, remédios. Enfim, era toda uma lógica de abastecimento casada com o transporte.

Z - A prefeitura alega que a tarifa única não pode ser implantada porque oneraria as pessoas que utilizam ônibus na região central. Como ficaria no antigo projeto?
NC
- Aí a questão é de concepção novamente. Eu, particularmente, defendo a tarifa única porque não é justo que as pessoas de uma cidade sejam prejudicadas porque moram em regiões mais afastadas do centro. Elas moram na mesma cidade. Inclusive, no interior e sul da Ilha é onde existem as comunidades mais antigas em termos de colonização. Na nossa concepção de transporte todos teriam os mesmos direitos no transporte coletivo e para isto era preciso oferecer o necessário sem onerar quem mora mais longe da região central.
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Z - E quem mora no centro, não pagaria mais caro que os outros, considerando o trajeto?
NC
- Não, pelo seguinte: na nossa época, a concentração de pessoas que moravam na área central da cidade, patamar 2, era 65% da população. Então, obviamente, que elas pagariam um pouco mais, mas seria muito pouco. Na época, pelos cálculos, a diferença não chegava a 5%. Em compensação, 35% das pessoas pagariam 50% a menos. O que as pessoas que moram na região central pagariam a mais seria muito pouco em relação ao ganho de quem mora mais longe. Se for considerar os aumentos de passagens destes últimos cinco anos, acima da inflação e dos aumentos de salários dos trabalhadores, estaria largamente compensado. E é uma questão de justiça social. Quem mora no norte ou sul da ilha não tem tanta oportunidade de trabalho e algumas opções de lazer do que quem mora na região central. Não é justo que elas paguem mais por morar mais longe. Nós fizemos discussões a respeito da tarifa única e destes 5% de aumento para a região central. A comunidade aceitaria tranqüilamente o fato da tarifa única. Além da simplicidade que proporciona uma só tarifa, onde tu usas o cartão magnético para todas linhas da cidade.

Z - Neste sistema novo, o que vai mudar em relação à tarifa?
NC
- Não muda muita coisa, porque o usuário vai continuar pagando tarifas diferentes. A integração será física e não tarifária. O que vai mudar é que os usuários terão mais conforto nos terminais, possivelmente as empresas vão adquirir uma frota mais nova. Agora, quem utiliza dois ônibus, vai continuar pagando duas tarifas diferentes. Na minha avaliação, só tem sentido fazer sistema integrado se o usuário ganha alguma coisa. Neste sistema ele continua tendo dificuldades para se locomover.

Z - Como funcionaria a câmara de compensação?
NC
- A câmara de compensação é um fundo de equilíbrio entre as linhas deficitárias e as linhas superavitárias, destinado às empresas. Cada linha tem um custo diferente. A despesa do ônibus do Expresso UFSC, por exemplo, é menor, por quilômetro rodado, do que a do trajeto em regiões distantes do centro. Na gestão anterior à nossa, os cálculos eram feitos pela prefeitura, que estabelecia o custo por quilômetro rodado de cada empresa. As empresas eram pagas de acordo com o serviço prestado por cada uma delas. Quem arrecadava mais que aquele custo, repassava semanalmente o valor para a câmara de compensação, e quem arrecadava menos, recebia. As empresas que fazem linhas onde há menor número de passageiros por quilômetro eram compensadas. Ele foi extinto, porque quando assumimos havia um déficit de aproximadamente R$ dois milhões, formado por questões políticas e falta de informação sobre a demanda. As informações que as próprias empresas repassavam eram insuficientes. Pagamos o déficit em 1993 e depois começamos a fazer modificações no sistema de transporte. Com a catraca eletrônica, a câmara de compensação seria complemente viável. Teria as informações sobre o número de passageiros em tempo real, o quadro de horários seria definido pelo poder público, que tem como estabelecer a quilometragem de cada empresa sem nenhum erro. Com a tarifa única seria mais fácil ainda, porque só importa o número de passageiros, e não o trajeto. Sendo o terminal do poder público, ficaria mais fácil esta fiscalização.

Z - A implantação da catraca eletrônica é muito criticada pelo perigo de perda dos empregos dos cobradores. Como ficava esta questão no antigo projeto?
NC
- A idéia era dar um novo perfil ao cobrador, e não acabar com estes empregos. Eles seriam uma fonte de informação e orientação ao usuário, e seriam preparados para isto. Não se excluiria o cobrador do ônibus. Até por questão de segurança não é bom o motorista ficar sozinho no carro. A gente sabia, na época, que não era interessante acabar com estes empregos. Foi feito inclusive um acordo coletivo na época com o sindicato.

Z - E a frota, seria diminuída?
NC
- Ao todo, não, a frota nos bairros realmente seria menor, porque o percurso também seria diminuído e o mesmo ônibus teria condições de fazer várias viagens, já que eles não iriam todos para o centro. Mas haveria uma maior demanda para os trajetos entre terminais e os expressos, que necessitariam de maior número de ônibus, já que os trajetos são mais longos.

Z - Porque este sistema de 1993 não foi implantado?
NC
- Por várias questões. Em 93/94 o Bndes não financiava o setor público, apenas o setor privado. E nós não conseguimos viabilizar recursos internos da prefeitura para a construção dos terminais. A partir de 1998 é que o Bndes passou a financiar o setor público também. Outras questões eram os problemas internos. O IPUF ( Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis) demorou muito tempo para concluir o projeto dos terminais. A estrutura que estava disponível também era precária. A equipe era muito pequena e, com formação na área de transporte havia eu, que era o gerente na época, e mais uma funcionária. O restante não tinha nível superior.

Z - Qual era o papel do IPUF?
NC
- O IPUF era um órgão à parte dentro da prefeitura. Uma questão essencial do nosso projeto era unificar trânsito e transporte. Para mim, isso era fundamental. Antes de sair, entreguei um relatório para o atual presidente do Núcleo de Transportes, D’Acampora, dizendo exatamente isto, e que era fundamental tentar conseguir. Era comum, por exemplo, o IPUF mudar a mão ou trancar uma rua e nem informar o Núcleo de Transportes. Hoje quem gerencia o transporte coletivo é o Núcleo de Transportes, ligado diretamente ao gabinete do prefeito. O IPUF gerencia o trânsito, vias, sinalização, etc. E não funciona separado. Florianópolis talvez seja a única capital onde é separado trânsito de transporte. Tem que priorizar em uma cidade o transporte coletivo ao individual. Isto do ponto de vista de políticas de transporte é consensual. E só se consegue isto trabalhando os dois ao mesmo tempo. O IPUF deve pensar no planejamento urbano e não gerenciar vias, sinalização, semáforos.


Leda Malysz

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