24 de Março de 2025 Número 1 - Ano I - Edição fechada em 29 de Julho de 2002 Florianópolis-SC
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No antigo asilo de Tierralta, os refugiados sobrevivem das mirradas doações do governo, da igreja e das ONG's / Foto: Márcia Bizzotto - ZeroDigam aos outros que vocês têm oito dias para deixaro povoado. Nós não nos responsabilizaremos pela vida de quem ficar”, é o que Arturo Barbosa, morador de Batata, lembra de ter ouvido um dos guerrilheiros gritar, enquanto empurrava alguns dos viajantes para dentro dos dois jipes, já lotados de gente, e ordenava que seguissem viagem. Apavoradas, muitas pessoas saíram correndo rumo a Batata tão logo o homem permitiu que se movessem. Arturo foi uma delas. Os carros, com gente pendurada por fora nas laterais e no teto, iam quase que à mesma velocidade daqueles que fugiam a pé. Cerca de quinhentos metros depois, o barulho dos tiros fez todos olharem para trás. O ônibus no qual vinham de Tierralta tinha sido transformado em uma grande bola de fogo e três moradores do corregimento foram executados. Era maio de 1996.

Faltava pouco mais de quinze quilômetros para a entrada de Batata quando os viajantes foram surpreendidos pelo bloqueio. A estrada estava ruim naquele dia e o ônibus não andava a mais de vinte quilômetros por hora. Não havia como desviar do grupo armado. Eram cerca de vinte guerrilheiros, a maioria crioulos jovens e mirrados, todos com metralhadoras em punho, braceletes com as cores da bandeira colombiana e as letras indicando: FARC-EP.

Outros dois veículos já estavam parados, seus onze ocupantes de pé em uma fila, sob a mira das armas de seis dos guerrilheiros. Arturo, um camponês alto e magro, com os 43 anos guardados em um corpo aparentando 53, era um dos 32 passageiros do ônibus. Eles se juntaram aos outros detidos sob os gritos confusos dos milicianos, que gesticulavam com suas metralhadoras, empurravam e puxavam os civis, formando com eles cinco longas filas paralelas, como se fossem um batalhão.

“Um dos guerrilheiros perguntou ao motorista do ônibus a que horas passaria o carro de volta para Tierralta”, recorda Arturo. Viria às duas. “Então vamos esperar”, o combatente teria determinado.

Era uma hora da tarde e os integrantes das FARC deram início ao interrogatório. Um por vez, os viajantes eram questionados sobre as mesmas coisas: “O que você fazia em Tierralta?”, “Você tem ligação com algum paramilitar?”, “Você ajuda o exército?”. Perguntavam sem dar muita atenção à resposta. Não acreditavam em nada que saísse das bocas daquelas pessoas. As respostas que queriam vinham de um outro morador de Batata, um jovem crioulo que surgiu do meio dos guerrilheiros apontando para dois dos homens detidos. “Este e este”, ele teria indicado, com o dedo magrelo em riste em frente aos narizes de dois comerciantes. Os escolhidos foram arrastados pelos braços um pouco mais para o lado, separados do grande grupo, sem qualquer explicação. Ninguém conseguia ouvir o que lhes era perguntado.

Duas da tarde, duas e meia, três horas. E nada do ônibus aparecer. Era impossível prever o atraso. Talvez o motorista tivesse apenas dormido demais na sesta; talvez tivesse decidido não voltar a Tierralta naquele dia. Nada era regular naquelas viagens, não havia horário exato e nem mesmo o compromisso de cumprir a rota. Os guerrilheiros estavam irritados.

“O líder do grupo disse que eles iriam a Tierralta com o ônibus em que a gente viajava e mandou que nós continuássemos a viagem nos outros carros que estavam ali”, conta Arturo. “Você fica”, ele ouviu o guerrilheiro ordenar ao motorista do ônibus retido no bloqueio.

Ao determinar que o corregimento fosse evacuado, os milicianos afirmaram que precisavam do território livre da presença de civis, a fim de que pudessem combater o exército e retomar o controle sobre a região.

Naquele dia de maio de 1996 o sol brilhava forte. As bananeiras que acompanham a rodovia estavam pesadas com frutos amarelos, prontos para serem colhidos. Em todos os ranchos de Batata, os milharais carregados prometiam uma colheita farta e um ano rentável para os camponeses.

Maria Tereza contemplava a plantação de milho de seu rancho, no pé de um morro de uma das veredas de Batata, quando sua filha de oito anos chegou afobada, apressando a mãe de volta para casa. O tio acabara de chegar de Tierralta com uma história terrível para contar.

Quando ouviu a história do cunhado Arturo, Maria Tereza não conseguia acreditar que a guerra da qual tanto ouvira falar tinha, por fim, chegado a sua terra. “Eu ouvia histórias como aquela, mas elas aconteciam longe. Eu nunca pensei que aquilo aconteceria comigo”, lembra.

A mulher, uma morena forte de corpo e personalidade, com grandes olhos verdes que presenteou aos cinco filhos, não esperou que o marido voltasse da roça. Chamou as crianças, que tinham entre quatro e dezessete anos na época, e ordenou que juntassem tudo o que poderiam carregar. Amarraram juntas as três galinhas que conseguiram pegar, Arturo encheu dois sacos de estopa com batata-doce, Maria Tereza tratou de fazer uma trouxa com as poucas peças de roupas de toda a família. O marido chegou do morro em seguida, com um balaio de milho que logo foi empacotado. Estavam prontos para a retirada para Tierralta. Era só esperar a camionete fazendo a rota para a cidade, que deveria passar em frente da casa a qualquer momento.

No centro de Batata, o exército era avisado pelos outros viajantes, que chegavam histéricos. Uma patrulha foi enviada imediatamente para o local do bloqueio, mas retornou horas depois sem sucesso. Restos do ônibus ainda eram consumidos pelo fogo e os guerrilheiros já haviam batido em retirada. Nem os corpos dos três homens executados estavam mais lá, apenas o rastro de sangue mata adentro.

A mobilização dos militares no corregimento não conteve a fuga massiva. Aterrorizados, camponeses de 1.360 famílias abandonaram seus lares, levando o que os músculos suportavam. As pessoas saíam das casas feito formigas, arrastando sacos de estopa com comida, malas e trouxas de roupas, cachorros, galinhas, periquitos, rádios. Por todos os lados apareciam mais famílias, vindas das veredas mais próximas, avisadas por algum parente ou vizinho.

Todos se amontoavam na praça do corregimento na esperança de conseguirem um espaço no único veículo que estava lá naquele dia. Maria Tereza, o esposo e Arturo deram um jeito de enfiar as crianças e seus pacotes e se pendurarem em algum pedacinho da carroceria ainda não ocupado. A camionete partiu se arrastando com o peso da gente pendurada e seus pertences. O caminho até a cidade era o mesmo no qual os três homens tinham sido executados poucas horas antes.

Avisados pelos refugiados que chegavam aos montes, a prefeitura de Tierralta enviou uma camionete a Batata para agilizar a fuga dos camponeses. A Cruz Vermelha Internacional, cujo escritório mais próximo estava a quase 700 quilômetros do município, pôde mandar um carro no dia seguinte. Parentes de moradores de Batata que tinham carro próprio corriam para buscá-los tão logo sabiam da tragédia. Três dias após a ação das FARC, Batata era habitada, além dos militares, apenas por outras dezessete pessoas, membros de três famílias que, vindas de veredas mais afastadas, se negavam a ir mais longe que o centro do corregimento.

Na tentativa de persuadir aquele grupo e evacuá-lo do possível centro de um conflito armado, o padre jesuíta Jorge Uribe, coordenador da paróquia de Tierralta, embarcou no helicóptero do exército – cedido ao batalhão da cidade por conta da gravidade da situação – com destino a Batata. Então com 58 anos, Uribe vivia há três em Tierralta e ia a Batata ao menos uma vez por mês, ministrar missas aos camponeses na sede que a igreja mantinha no corregimento. Ele conhecia todos os moradores da região e tinha conquistado sua confiança e respeito. Era, portanto, a pessoa mais indicada para a tarefa.

Empunhando um megafone, o padre gritava, às ruas quase vazias, frases garantindo que Batata estava em paz, e pedindo que todos os moradores da região viessem ao centro do povoado. “Eu sabia que ainda devia haver gente pelas veredas”, justifica. De fato: ao reconhecer a voz do pároco, dezenas de pessoas surgiram dos morros. Tinham abandonado suas casas e se escondido no mato, à espreita, com medo de que o conflito já tivesse se iniciado ou de que se tratasse de uma emboscada.

Os conselhos de padre Jorge, entretanto, não foram suficientes para demover algumas famílias da decisão de permanecer no centro de Batata e Uribe. Resolveu ceder a casa paroquial local como abrigo àquelas pessoas.

Na entrada de Tierralta, a estrada que vinha de Batata era um quadro expressionista em movimento. Chacoalhando pelo estreito caminho no vale do Rio Sinú, duas camionetes e um jipe, com dezenas de pessoas apinhadas nas carrocerias ou penduradas pelo lado de fora, terminavam a primeira de muitas viagens, acompanhados por uma meia dúzia de burros ofegantes, dois balaios repletos de pacotes em cada lado e duas crianças no lombo de cada um deles, mais um grupo enorme de camponeses ao redor. Todos tão carregados quanto os burricos. Eram os refugiados de Batata, que chegavam em massa ao município.

“As ruas daqui estavam cheias. Vinha gente descendo por todos os lados, com galinhas, milho, tudo. As casas iam se enchendo até não caber mais ninguém”, conta Colchón, 61 anos, os caracóis dos cabelos brancos emoldurando o rosto maroto do crioulo e os olhos arregalados, ainda espantados com a cena que, ele garante, jamais tinha visto ou imaginado. Também refugiado de Batata, ele estava em Tierralta, por acaso, quando houve o deslocamento em massa. Chegara naquele mesmo dia de Cartagena, para onde havia ido uma semana antes em visita a um irmão. Sua esposa e os dois filhos, no entanto, haviam ficado em Batata e, àquela altura, ele não sabia se estavam entre os fugitivos ou que fim teriam levado.

Colchón teve sorte. “Naquele mesmo dia, eu sentei num bar para pensar no que eu ia fazer da vida”, recorda. “Foi aí que conheci um senhor muito rico, que vive numa fazenda perto de Tierralta. É o dono da casinha onde eu moro hoje. O senhor me disse que a casa estava desocupada, porque ele só vem para cá em alguns finais de semana, então me alugou baratinho”. O homem, cujo nome Colchón não revela, ainda lhe deu roupas e comida que durou por quase um mês.

Para a família de Maria Tereza não foi nada fácil. Ela pegou as crianças e saltou do carro em frente a casa da sogra, que morava em Tierralta. Era lá que Maria Tereza também viveria, com os cinco filhos, o esposo e o cunhado, até que a situação se normalizasse. A pequena casa de dois quartos já hospedava também a família de sua cunhada.

Exército: garantia de tranqülidade, quando estão presentes / Foto: Márcia Bizzotto - ZeroA situação era a mesma para a maioria dos refugiados. Eles se alojaram em casas de parentes e amigos – havia casebres com até cinco famílias. Os que não tinham conhecidos na cidade, se reuniram na praça em frente à paróquia, à espera de alguma solução. Organizados pelo padre Jorge Uribe e pela Cruz Vermelha da Colômbia, alguns grupos foram levados para o asilo de Tierralta que, transformado em abrigo, já recebia camponeses deslocados de outros corregimentos. Os demais ocuparam as estreitas salas de aula da pequena escola comunitária da igreja. As pessoas dormiam em papelões espalhados pelo chão, em redes ou em colchonetes fornecidos pela Cruz Vermelha.

José Pedrahita e a família foram acolhidos na escola da paróquia. “Tive que abandonar cinco mil pés de batata-doce que estavam no ponto para serem colhidas. Minhas vacas e galinhas a guerrilha levou”, ele diz quase que em um sussurro, o rosto curtido pelo sol, mais enrugado que seus 52 anos. Conversamos no corredor de entrada da escola, de frente para a rua, de onde ele não tira os olhos angustiados. “Se algum paramilitar me vê conversando com você eu estou morto. Só estou falando com você porque foi Rosio quem te apresentou”, explica-se, referindo-se à secretária da escola, que me ajudava a estabelecer contato com as vítimas do deslocamento.

Como a grande maioria dos camponeses de Batata, Pedrahita tinha cinco filhos pequenos – o mais velho com 14 anos – e não fazia idéia de como sustentá-los na cidade. Os mantimentos distribuídos pela Cruz Vermelha e pela Rede de Solidariedade, órgão do governo para ações sociais, eram escassos para famílias compostas por mais de cinco membros, muitas com crianças menores de dez anos. “O feijão dava para duas semanas. As crianças choravam porque muitas vezes não tinham leite”, lembra Angélica Garcia, que abandonou Batata com o marido e quatro filhos entre um e cinco anos de idade.

Além da fome, o impacto psicológico que haviam sofrido, dificultava a adaptação das crianças ao novo modo de vida. Muitas haviam testemunhado seu pai, irmão ou tio, sendo carregado à força por algum homem armado, para nunca mais voltar para casa. Outras tinham presenciado uma arma apontada para a cabeça da mãe, enquanto era ameaçada de morte, caso não abandonasse seu lar. Em 1996 o governo colombiano não tinha qualquer programa de apoio psicológico às vítimas da guerra civil e a única ONG atuante na região de Tierralta era a Cruz Vermelha Internacional.

A prefeitura do município tratou de garantir acesso às duas escolas públicas municipais. O número de vagas, no entanto, era muito inferior ao de crianças em idade escolar. Ao mesmo tempo, refugiados que conseguiam matricular os filhos, não tinham condições de providenciar o material necessário para as aulas e, as doações da população, feitas por intermédio da igreja, estavam longe de suprir essa deficiência. Sem nada o que fazer, as crianças passavam os dias brincando em meio ao lixo espalhado nos arredores dos abrigos.

As condições de higiene naquela situação não poderiam ser piores. Centenas de pessoas empilhadas em pequenos espaços, em um município onde não há sistema de coleta de lixo e tratamento de esgoto. As doenças proliferavam rapidamente. O único hospital de Tierralta, uma construção de quase quinhentos metros quadrados dentro de paredes amareladas, não dispunha de médicos suficientes para atender a todos. Os refugiados faziam fila sentados pelo chão imundo dos corredores e esperavam o dia inteiro por uma vacina contra febre amarela que, depois saberiam, tinha vencido no dia anterior. Teriam, então, que voltar dentro de dois dias, quando seria fornecido um novo lote. Os medicamentos, trazidos de Montería, capital de Córdoba, demoravam dias para chegarem e eram muito escassos. O hospital também não possuía equipamentos e materiais necessários para exames laboratoriais. Os refugiados, por sua vez, não possuíam dinheiro para realizá-los em Montería, distante quase duas horas e cinco mil pesos dali.

Os camponeses penavam para conseguir algum serviço. Criados na roça, com pouca ou nenhuma instrução, sabiam apenas trabalhar na terra que lhes havia sido tirada, sua fonte de dinheiro e alimentação. Mesmo aqueles com alguma capacitação profissional tinham dificuldade para conseguir emprego na cidade, onde o campo de trabalho já estava saturado. “Todos os dias, nós nos reuníamos na praça da igreja, que ficava cheia de refugiados. Todo mundo sem trabalho, sem saber o que fazer, olhando uns para as caras dos outros”, conta Maria Tereza.

A Casa da Cultura Camponesa de Tierralta, também coordenada pelo padre Jorge Uribe, buscou auxílio de instituições governamentais – Rede de Solidariedade, Caixa Agrária, Ministérios da Agricultura e do Interior, IICA (Instituto Agropecuário), Incora (Instituto Colombiano para a Reforma Agrária), Idema (Instituto de Mercado Agropecuário). Mas foi com a ajuda da universidade, pertencente à igreja jesuíta, que criou o Programa Aurora, com o objetivo de garantir ajuda não apenas financeira, mas também educacional, aos refugiados. Apoiado ainda por organizações não-governamentais, o Programa Aurora criou onze cursos de profissionalização. Durante o dia, nas salas de aula da escola comunitária da igreja, os refugiados encostavam os colchonetes nas paredes e ocupavam as carteiras para aprenderem técnicas de aproveitamento da terra e semeadura, implementação de moradias e organização cívica e jurídica. A maioria dos camponeses, até então, desconheciam seus direitos como cidadãos ou como refugiados. Muitos não sabiam ler e escrever e sequer tinham certidão de nascimento.

Seis meses após serem expulsas de Batata, mais de quatrocentas famílias foram assentadas em duas fazendas, compradas pelo Incora (Instituto Colombiano para a Reforma Agrária) em outros corregimentos de Tierralta, em um projeto assessorado pela Universidade Javeriana.

Outras duzentas famílias, ainda receosas quanto à situação no campo, preferiram continuar em Tierralta. “Viver no campo não é mais viver, é sofrer”, testemunha José Murillo, expulso de Batata em 1996, mas meses antes do deslocamento em massa. Com os três filhos já morando em Tierralta naquela época, Murillo ia ao município a cada dez dias para levar-lhes dinheiro e comida. As freqüentes viagens ao território paramilitar gerou desconfiança nos guerrilheiros baseados em Batata. “Eles iam na minha casa e perguntavam o que eu tanto vinha fazer em Tierralta. Eu vivia nervoso”, lembra, com os olhos fixos no nada e a voz embargada. “Eu pensava: ‘por que querem me proibir de sair de Batata já que eu tenho filhos na cidade?’”.

Murillo e sua esposa deixaram no povoado um pequeno rancho, no qual plantavam arroz, milho e batata-doce. Em Tierralta, a família passou a sobreviver com a renda das raras vendas de móveis que Murillo fabricava na sala da casa de um quarto, que pôde comprar com as economias de anos, reservadas para os estudos dos filhos. “Isso foi o que nos deu comida, porque eu não pude trazer nada da minha casa em Batata”, lamenta. Quando pôde voltar para buscar alguma coisa, a terra já não oferecia nada, e até as tábuas da casa que ele havia construído estavam imprestáveis.

A maioria dos outros refugiados que permaneceram em Tierralta se organizou em pequenas associações – Assoprodes, Assoprodec, Assodesbat. Sem terra ou trabalho, sobreviviam da ajuda da igreja, da Rede de Solidariedade e de organizações não governamentais. Mesmo assim, acreditavam que estavam melhor ali, onde não eram intimidadas pelo conflito armado e, apesar da miséria, a educação e atendimento médico eram melhores que no campo.

O ameaçado enfrentamento entre guerrilha e exército em Batata não ocorreu de fato e, em dezembro de 1996, a situação parecia mais calma. Alguns refugiados resolveram, então, retornar para casa. A mando do marido, Maria Tereza juntou as crianças novamente. “Que nos matem de uma vez, mas nós vamos voltar. Em Tierralta a gente não fica mais”, ela lembra de tê-lo ouvido gritar. “Morri de medo de voltar para lá, principalmente na primeira noite. Mas o que a gente faria aqui? Sem trabalho, sem terra. Em Batata a gente tinha tudo. Tinha nosso cantinho, plantava um milho, um plátano, fazia um dinheirinho. Tudo o que precisa, ainda tem lá”, a morena forte explica, com um sorriso meigo, meio encabulado.

Sua família foi a primeira a fazer o caminho de volta, quatro meses após a expulsão do povoado. A estrada, então, já estava tomada pelo mato e era impossível seguir de carro após um determinado ponto. O grupo teve que caminhar por cerca de uma hora, carregando as trouxas com roupas e alguns poucos pertences. “O corregimento estava às moscas. Tinha montes de areia por tudo e os animais tinham morrido de fome”, diz Maria Tereza. A guerrilha, no entanto, não roubou nada do que a família havia sido obrigada a deixar para trás. “Ainda estava tudo lá, do jeito que a gente tinha deixado”.

Colchón, que retornou a Batata dois meses mais tarde, não teve a mesma sorte. “Fui acompanhado do padre Jorge, só para pegar umas coisas minhas. Depois do que eu vi não quis mais ficar por lá não. Voltei para Tierralta”. A casa onde vivia tinha sido queimada e tudo o que possuía, virado cinzas. Por sorte lhe restaram as ferramentas, que ele havia levado para Cartagena, com as quais hoje fabrica e arruma equipamentos para os produtores da região, trabalho que lhe garante comida todos os dias.

A maioria, entretanto, foi para ficar. Até maio de 1997 mais de 3600 pessoas, pertencentes a 686 famílias, retornaram ao povoado. Como assistência inicial, receberam 80 toneladas de milho do Programa Aurora, construíram o maquinário necessário, pilaram e distribuíram o produto entre o próprio grupo.

População de Batata aguarda a missa mensal do padre Pedronel / Foto: Márcia Bizzoto - ZeroO Programa Aurora também obteve verba para a fundação de três microempresas: de processamento de frutas, transporte de produtos da região e construção de tetos de palma. As empresas garantiram a subsistência de muitos dos refugiados. O que era produzido por uma, era transportado pela outra, e vendido em Tierralta, como antes do deslocamento, aos mercados locais e da região.

Os que voltaram, fundaram também a Associação de Cultivadores de Milho recuperaram as terras ainda abandonadas. Com o lucro das primeiras colheitas, foi possível comprar um trator, uma piladora de milho e uma sede própria. No entanto, o grupo continuou sofrendo os efeitos dos enfrentamentos entre grupos armados: ameaças, desaparições e assassinatos.

José Murillo fixa seus olhos negros, brilhantes com as lágrimas que se recusam a cair, nos meus: “Dois amigos meus foram assassinados quando voltavam para Batata. Ninguém sabe quem foi, ninguém viu. No campo, as casas ficam longe umas das outras. O sujeito não se dá conta de quem chega. Eles (os grupos armados) chegam, matam e vão embora, sem que ninguém veja nada”. O crime, ele garante, não foi por dinheiro. As vítimas eram donas de sete hectares de terra, que ficaram intocados. “Tudo o que eles tinham no rancho ficou lá”, afirma Murillo. “Mas também não imagino o que se passou pela cabeça dos assassinos. Eu conhecia os dois (mortos) e eles eram pessoas corretas. Não sei do que podiam ser culpados”.

José Pedrahita também afirma ter conhecido pessoas que foram executadas depois de retornarem a Batata. “Era gente que tinha umas cabeças de gado. Os paracos (paramilitares) mataram eles para roubar a criação”, explica, quase inaudível, depois de me pedir para desligar o gravador. “Por aqui, quanto menos você tem, menos risco você corre”. Colchón confirma a teoria. “Aparece um grupo armado e manda o colono ir buscar o gado que ele cria lá no morro. Quando o sujeito volta, eles perguntam: ‘Esse gado aí é teu?’. E o sujeito tem que dizer que não, se não morre. Imagine: a vaquinha que você investiu para criar, trabalhou, e que vai te dar dinheiro para comprar comida para os filhos no final do mês. Aí chega um grupo e leva. E você ainda tem que dizer que é dele”.

Com o passar do tempo, as dificuldades não se restringiam à segurança. Em assembléias, os camponeses discutiam a política agrária do governo, que passou a comprar o milho a preços baixos, tornando deficitário o cultivo do produto.

Ao mesmo tempo, o Programa Aurora começou a sofrer denúncias de que os recursos levantados pelo Estado estariam sendo desviados para localidades fora da cobertura do projeto. Relatórios da própria Casa da Cultura Camponesa de Tierralta, afirmam, que a forma de aplicação do dinheiro, não obedecia a um critério de “organização comunitária com igualdade de oportunidades, mas sim ao de uma campanha política e clientelista”.

Márcia Bizzotto

O Zero esteve lá

Nesta e nas matérias "O dinheiro aqui vem de cultivos ilícitos" e Povo sem chão, sem emprego e comida, você mergulha num relato colhido diretamente junto ao, também sofrido, povo da Colômbia. São trechos do trabalho de conclusão de curso, Guerreiros – A saga de um povo que se mata, de Márcia Bizzotto, defendido no final do segundo semestre de 2001, com orientação do professor Henrique Finco, aqui no Curso de Jornalismo da UFSC. Tarefa elogiável, naturalmente aprovada pela banca examinadora, onde se destacam pelo menos três virtudes. A coragem da jovem repórter em apostar numa investigação em território onde mortes e assassinatos estão mais banalizados que no Brasil. Sensibilidade, por perceber e resgatar a tragédia do povo colombiano, especialmente os camponeses, esquecidos e destituídos de formas mínimas de proteção no fogo cruzado entre paramilitares, guerrilha, exército e narcotraficantes. Por fim, a qualidade que conseguiu imprimir em seu relato, despretencioso e fluído, mas muito eficaz na tradução do cotidiano de um povo órfão, que ainda evoca as tragédias da Macondo original (e nem tanto ficcional) de Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez. Com a cara e a coragem ela foi lá. E voltou com este relato que entregamos para a seu juízo.

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