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JORNALISMO
- UFSC
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Digam
aos outros que vocês têm oito dias para deixaro
povoado. Nós não nos responsabilizaremos pela
vida de quem ficar”, é o que Arturo Barbosa, morador
de Batata, lembra de ter ouvido um dos guerrilheiros gritar,
enquanto empurrava alguns dos viajantes para dentro dos dois
jipes, já lotados de gente, e ordenava que seguissem
viagem. Apavoradas, muitas pessoas saíram correndo rumo
a Batata tão logo o homem permitiu que se movessem. Arturo
foi uma delas. Os carros, com gente pendurada por fora nas laterais
e no teto, iam quase que à mesma velocidade daqueles
que fugiam a pé. Cerca de quinhentos metros depois, o
barulho dos tiros fez todos olharem para trás. O ônibus
no qual vinham de Tierralta tinha sido transformado em uma grande
bola de fogo e três moradores do corregimento
foram executados. Era maio de 1996.
Faltava pouco mais de quinze quilômetros para a entrada
de Batata quando os viajantes foram surpreendidos pelo bloqueio.
A estrada estava ruim naquele dia e o ônibus não
andava a mais de vinte quilômetros por hora. Não
havia como desviar do grupo armado. Eram cerca de vinte guerrilheiros,
a maioria crioulos jovens e mirrados, todos com metralhadoras
em punho, braceletes com as cores da bandeira colombiana e as
letras indicando: FARC-EP.
Outros dois veículos já estavam parados, seus
onze ocupantes de pé em uma fila, sob a mira das armas
de seis dos guerrilheiros. Arturo, um camponês alto e
magro, com os 43 anos guardados em um corpo aparentando 53,
era um dos 32 passageiros do ônibus. Eles se juntaram
aos outros detidos sob os gritos confusos dos milicianos, que
gesticulavam com suas metralhadoras, empurravam e puxavam os
civis, formando com eles cinco longas filas paralelas, como
se fossem um batalhão.
“Um dos guerrilheiros perguntou ao motorista do ônibus
a que horas passaria o carro de volta para Tierralta”,
recorda Arturo. Viria às duas. “Então vamos
esperar”, o combatente teria determinado.
Era uma hora da tarde e os integrantes das FARC deram início
ao interrogatório. Um por vez, os viajantes eram questionados
sobre as mesmas coisas: “O que você fazia em Tierralta?”,
“Você tem ligação com algum paramilitar?”,
“Você ajuda o exército?”. Perguntavam
sem dar muita atenção à resposta. Não
acreditavam em nada que saísse das bocas daquelas pessoas.
As respostas que queriam vinham de um outro morador de Batata,
um jovem crioulo que surgiu do meio dos guerrilheiros
apontando para dois dos homens detidos. “Este e este”,
ele teria indicado, com o dedo magrelo em riste em frente aos
narizes de dois comerciantes. Os escolhidos foram arrastados
pelos braços um pouco mais para o lado, separados do
grande grupo, sem qualquer explicação. Ninguém
conseguia ouvir o que lhes era perguntado.
Duas da tarde, duas e meia, três horas. E nada do ônibus
aparecer. Era impossível prever o atraso. Talvez o motorista
tivesse apenas dormido demais na sesta; talvez tivesse decidido
não voltar a Tierralta naquele dia. Nada era regular
naquelas viagens, não havia horário exato e nem
mesmo o compromisso de cumprir a rota. Os guerrilheiros estavam
irritados.
“O líder do grupo disse que eles iriam a Tierralta
com o ônibus em que a gente viajava e mandou que nós
continuássemos a viagem nos outros carros que estavam
ali”, conta Arturo. “Você fica”, ele
ouviu o guerrilheiro ordenar ao motorista do ônibus retido
no bloqueio.
Ao determinar que o corregimento fosse evacuado, os
milicianos afirmaram que precisavam do território livre
da presença de civis, a fim de que pudessem combater
o exército e retomar o controle sobre a região.
Naquele dia de maio de 1996 o sol brilhava forte. As bananeiras
que acompanham a rodovia estavam pesadas com frutos amarelos,
prontos para serem colhidos. Em todos os ranchos de Batata,
os milharais carregados prometiam uma colheita farta e um ano
rentável para os camponeses.
Maria Tereza contemplava a plantação de milho
de seu rancho, no pé de um morro de uma das veredas de
Batata, quando sua filha de oito anos chegou afobada, apressando
a mãe de volta para casa. O tio acabara de chegar de
Tierralta com uma história terrível para contar.
Quando ouviu a história do cunhado Arturo, Maria Tereza
não conseguia acreditar que a guerra da qual tanto ouvira
falar tinha, por fim, chegado a sua terra. “Eu ouvia histórias
como aquela, mas elas aconteciam longe. Eu nunca pensei que
aquilo aconteceria comigo”, lembra.
A mulher, uma morena forte de corpo e personalidade, com grandes
olhos verdes que presenteou aos cinco filhos, não esperou
que o marido voltasse da roça. Chamou as crianças,
que tinham entre quatro e dezessete anos na época, e
ordenou que juntassem tudo o que poderiam carregar. Amarraram
juntas as três galinhas que conseguiram pegar, Arturo
encheu dois sacos de estopa com batata-doce, Maria Tereza tratou
de fazer uma trouxa com as poucas peças de roupas de
toda a família. O marido chegou do morro em seguida,
com um balaio de milho que logo foi empacotado. Estavam prontos
para a retirada para Tierralta. Era só esperar a camionete
fazendo a rota para a cidade, que deveria passar em frente da
casa a qualquer momento.
No centro de Batata, o exército era avisado pelos outros
viajantes, que chegavam histéricos. Uma patrulha foi
enviada imediatamente para o local do bloqueio, mas retornou
horas depois sem sucesso. Restos do ônibus ainda eram
consumidos pelo fogo e os guerrilheiros já haviam batido
em retirada. Nem os corpos dos três homens executados
estavam mais lá, apenas o rastro de sangue mata adentro.
A mobilização dos militares no corregimento
não conteve a fuga massiva. Aterrorizados, camponeses
de 1.360 famílias abandonaram seus lares, levando o que
os músculos suportavam. As pessoas saíam das casas
feito formigas, arrastando sacos de estopa com comida, malas
e trouxas de roupas, cachorros, galinhas, periquitos, rádios.
Por todos os lados apareciam mais famílias, vindas das
veredas mais próximas, avisadas por algum parente ou
vizinho.
Todos se amontoavam na praça do corregimento
na esperança de conseguirem um espaço no único
veículo que estava lá naquele dia. Maria Tereza,
o esposo e Arturo deram um jeito de enfiar as crianças
e seus pacotes e se pendurarem em algum pedacinho da carroceria
ainda não ocupado. A camionete partiu se arrastando com
o peso da gente pendurada e seus pertences. O caminho até
a cidade era o mesmo no qual os três homens tinham sido
executados poucas horas antes.
Avisados pelos refugiados que chegavam aos montes, a prefeitura
de Tierralta enviou uma camionete a Batata para agilizar a fuga
dos camponeses. A Cruz Vermelha Internacional, cujo escritório
mais próximo estava a quase 700 quilômetros do
município, pôde mandar um carro no dia seguinte.
Parentes de moradores de Batata que tinham carro próprio
corriam para buscá-los tão logo sabiam da tragédia.
Três dias após a ação das FARC, Batata
era habitada, além dos militares, apenas por outras dezessete
pessoas, membros de três famílias que, vindas de
veredas mais afastadas, se negavam a ir mais longe que o centro
do corregimento.
Na tentativa de persuadir aquele grupo e evacuá-lo do
possível centro de um conflito armado, o padre jesuíta
Jorge Uribe, coordenador da paróquia de Tierralta, embarcou
no helicóptero do exército – cedido ao batalhão
da cidade por conta da gravidade da situação –
com destino a Batata. Então com 58 anos, Uribe vivia
há três em Tierralta e ia a Batata ao menos uma
vez por mês, ministrar missas aos camponeses na sede que
a igreja mantinha no corregimento. Ele conhecia todos
os moradores da região e tinha conquistado sua confiança
e respeito. Era, portanto, a pessoa mais indicada para a tarefa.
Empunhando um megafone, o padre gritava, às ruas quase
vazias, frases garantindo que Batata estava em paz, e pedindo
que todos os moradores da região viessem ao centro do
povoado. “Eu sabia que ainda devia haver gente pelas veredas”,
justifica. De fato: ao reconhecer a voz do pároco, dezenas
de pessoas surgiram dos morros. Tinham abandonado suas casas
e se escondido no mato, à espreita, com medo de que o
conflito já tivesse se iniciado ou de que se tratasse
de uma emboscada.
Os conselhos de padre Jorge, entretanto, não foram suficientes
para demover algumas famílias da decisão de permanecer
no centro de Batata e Uribe. Resolveu ceder a casa paroquial
local como abrigo àquelas pessoas.
Na entrada de Tierralta, a estrada que vinha de Batata era um
quadro expressionista em movimento. Chacoalhando pelo estreito
caminho no vale do Rio Sinú, duas camionetes e um jipe,
com dezenas de pessoas apinhadas nas carrocerias ou penduradas
pelo lado de fora, terminavam a primeira de muitas viagens,
acompanhados por uma meia dúzia de burros ofegantes,
dois balaios repletos de pacotes em cada lado e duas crianças
no lombo de cada um deles, mais um grupo enorme de camponeses
ao redor. Todos tão carregados quanto os burricos. Eram
os refugiados de Batata, que chegavam em massa ao município.
“As ruas daqui estavam cheias. Vinha gente descendo por
todos os lados, com galinhas, milho, tudo. As casas iam se enchendo
até não caber mais ninguém”, conta
Colchón, 61 anos, os caracóis dos cabelos brancos
emoldurando o rosto maroto do crioulo e os olhos arregalados,
ainda espantados com a cena que, ele garante, jamais tinha visto
ou imaginado. Também refugiado de Batata, ele estava
em Tierralta, por acaso, quando houve o deslocamento em massa.
Chegara naquele mesmo dia de Cartagena, para onde havia ido
uma semana antes em visita a um irmão. Sua esposa e os
dois filhos, no entanto, haviam ficado em Batata e, àquela
altura, ele não sabia se estavam entre os fugitivos ou
que fim teriam levado.
Colchón teve sorte. “Naquele mesmo dia, eu sentei
num bar para pensar no que eu ia fazer da vida”, recorda.
“Foi aí que conheci um senhor muito rico, que vive
numa fazenda perto de Tierralta. É o dono da casinha
onde eu moro hoje. O senhor me disse que a casa estava desocupada,
porque ele só vem para cá em alguns finais de
semana, então me alugou baratinho”. O homem, cujo
nome Colchón não revela, ainda lhe deu roupas
e comida que durou por quase um mês.
Para a família de Maria Tereza não foi nada fácil.
Ela pegou as crianças e saltou do carro em frente a casa
da sogra, que morava em Tierralta. Era lá que Maria Tereza
também viveria, com os cinco filhos, o esposo e o cunhado,
até que a situação se normalizasse. A pequena
casa de dois quartos já hospedava também a família
de sua cunhada.
A
situação era a mesma para a maioria dos refugiados.
Eles se alojaram em casas de parentes e amigos – havia
casebres com até cinco famílias. Os que não
tinham conhecidos na cidade, se reuniram na praça em
frente à paróquia, à espera de alguma solução.
Organizados pelo padre Jorge Uribe e pela Cruz Vermelha da Colômbia,
alguns grupos foram levados para o asilo de Tierralta que, transformado
em abrigo, já recebia camponeses deslocados de outros
corregimentos. Os demais ocuparam as estreitas salas
de aula da pequena escola comunitária da igreja. As pessoas
dormiam em papelões espalhados pelo chão, em redes
ou em colchonetes fornecidos pela Cruz Vermelha.
José Pedrahita e a família foram acolhidos na
escola da paróquia. “Tive que abandonar cinco mil
pés de batata-doce que estavam no ponto para serem colhidas.
Minhas vacas e galinhas a guerrilha levou”, ele diz quase
que em um sussurro, o rosto curtido pelo sol, mais enrugado
que seus 52 anos. Conversamos no corredor de entrada da escola,
de frente para a rua, de onde ele não tira os olhos angustiados.
“Se algum paramilitar me vê conversando com você
eu estou morto. Só estou falando com você porque
foi Rosio quem te apresentou”, explica-se, referindo-se
à secretária da escola, que me ajudava a estabelecer
contato com as vítimas do deslocamento.
Como a grande maioria dos camponeses de Batata, Pedrahita tinha
cinco filhos pequenos – o mais velho com 14 anos –
e não fazia idéia de como sustentá-los
na cidade. Os mantimentos distribuídos pela Cruz Vermelha
e pela Rede de Solidariedade, órgão do governo
para ações sociais, eram escassos para famílias
compostas por mais de cinco membros, muitas com crianças
menores de dez anos. “O feijão dava para duas semanas.
As crianças choravam porque muitas vezes não tinham
leite”, lembra Angélica Garcia, que abandonou Batata
com o marido e quatro filhos entre um e cinco anos de idade.
Além da fome, o impacto psicológico que haviam
sofrido, dificultava a adaptação das crianças
ao novo modo de vida. Muitas haviam testemunhado seu pai, irmão
ou tio, sendo carregado à força por algum homem
armado, para nunca mais voltar para casa. Outras tinham presenciado
uma arma apontada para a cabeça da mãe, enquanto
era ameaçada de morte, caso não abandonasse seu
lar. Em 1996 o governo colombiano não tinha qualquer
programa de apoio psicológico às vítimas
da guerra civil e a única ONG atuante na região
de Tierralta era a Cruz Vermelha Internacional.
A prefeitura do município tratou de garantir acesso às
duas escolas públicas municipais. O número de
vagas, no entanto, era muito inferior ao de crianças
em idade escolar. Ao mesmo tempo, refugiados que conseguiam
matricular os filhos, não tinham condições
de providenciar o material necessário para as aulas e,
as doações da população, feitas
por intermédio da igreja, estavam longe de suprir essa
deficiência. Sem nada o que fazer, as crianças
passavam os dias brincando em meio ao lixo espalhado nos arredores
dos abrigos.
As condições de higiene naquela situação
não poderiam ser piores. Centenas de pessoas empilhadas
em pequenos espaços, em um município onde não
há sistema de coleta de lixo e tratamento de esgoto.
As doenças proliferavam rapidamente. O único hospital
de Tierralta, uma construção de quase quinhentos
metros quadrados dentro de paredes amareladas, não dispunha
de médicos suficientes para atender a todos. Os refugiados
faziam fila sentados pelo chão imundo dos corredores
e esperavam o dia inteiro por uma vacina contra febre amarela
que, depois saberiam, tinha vencido no dia anterior. Teriam,
então, que voltar dentro de dois dias, quando seria fornecido
um novo lote. Os medicamentos, trazidos de Montería,
capital de Córdoba, demoravam dias para chegarem e eram
muito escassos. O hospital também não possuía
equipamentos e materiais necessários para exames laboratoriais.
Os refugiados, por sua vez, não possuíam dinheiro
para realizá-los em Montería, distante quase duas
horas e cinco mil pesos dali.
Os camponeses penavam para conseguir algum serviço. Criados
na roça, com pouca ou nenhuma instrução,
sabiam apenas trabalhar na terra que lhes havia sido tirada,
sua fonte de dinheiro e alimentação. Mesmo aqueles
com alguma capacitação profissional tinham dificuldade
para conseguir emprego na cidade, onde o campo de trabalho já
estava saturado. “Todos os dias, nós nos reuníamos
na praça da igreja, que ficava cheia de refugiados. Todo
mundo sem trabalho, sem saber o que fazer, olhando uns para
as caras dos outros”, conta Maria Tereza.
A Casa da Cultura Camponesa de Tierralta, também coordenada
pelo padre Jorge Uribe, buscou auxílio de instituições
governamentais – Rede de Solidariedade, Caixa Agrária,
Ministérios da Agricultura e do Interior, IICA (Instituto
Agropecuário), Incora (Instituto Colombiano para a Reforma
Agrária), Idema (Instituto de Mercado Agropecuário).
Mas foi com a ajuda da universidade, pertencente à igreja
jesuíta, que criou o Programa Aurora, com o objetivo
de garantir ajuda não apenas financeira, mas também
educacional, aos refugiados. Apoiado ainda por organizações
não-governamentais, o Programa Aurora criou onze cursos
de profissionalização. Durante o dia, nas salas
de aula da escola comunitária da igreja, os refugiados
encostavam os colchonetes nas paredes e ocupavam as carteiras
para aprenderem técnicas de aproveitamento da terra e
semeadura, implementação de moradias e organização
cívica e jurídica. A maioria dos camponeses, até
então, desconheciam seus direitos como cidadãos
ou como refugiados. Muitos não sabiam ler e escrever
e sequer tinham certidão de nascimento.
Seis meses após serem expulsas de Batata, mais de quatrocentas
famílias foram assentadas em duas fazendas, compradas
pelo Incora (Instituto Colombiano para a Reforma Agrária)
em outros corregimentos de Tierralta, em um projeto
assessorado pela Universidade Javeriana.
Outras duzentas famílias, ainda receosas quanto à
situação no campo, preferiram continuar em Tierralta.
“Viver no campo não é mais viver, é
sofrer”, testemunha José Murillo, expulso de Batata
em 1996, mas meses antes do deslocamento em massa. Com os três
filhos já morando em Tierralta naquela época,
Murillo ia ao município a cada dez dias para levar-lhes
dinheiro e comida. As freqüentes viagens ao território
paramilitar gerou desconfiança nos guerrilheiros baseados
em Batata. “Eles iam na minha casa e perguntavam o que
eu tanto vinha fazer em Tierralta. Eu vivia nervoso”,
lembra, com os olhos fixos no nada e a voz embargada. “Eu
pensava: ‘por que querem me proibir de sair de Batata
já que eu tenho filhos na cidade?’”.
Murillo e sua esposa deixaram no povoado um pequeno rancho,
no qual plantavam arroz, milho e batata-doce. Em Tierralta,
a família passou a sobreviver com a renda das raras vendas
de móveis que Murillo fabricava na sala da casa de um
quarto, que pôde comprar com as economias de anos, reservadas
para os estudos dos filhos. “Isso foi o que nos deu comida,
porque eu não pude trazer nada da minha casa em Batata”,
lamenta. Quando pôde voltar para buscar alguma coisa,
a terra já não oferecia nada, e até as
tábuas da casa que ele havia construído estavam
imprestáveis.
A maioria dos outros refugiados que permaneceram em Tierralta
se organizou em pequenas associações – Assoprodes,
Assoprodec, Assodesbat. Sem terra ou trabalho, sobreviviam da
ajuda da igreja, da Rede de Solidariedade e de organizações
não governamentais. Mesmo assim, acreditavam que estavam
melhor ali, onde não eram intimidadas pelo conflito armado
e, apesar da miséria, a educação e atendimento
médico eram melhores que no campo.
O ameaçado enfrentamento entre guerrilha e exército
em Batata não ocorreu de fato e, em dezembro de 1996,
a situação parecia mais calma. Alguns refugiados
resolveram, então, retornar para casa. A mando do marido,
Maria Tereza juntou as crianças novamente. “Que
nos matem de uma vez, mas nós vamos voltar. Em Tierralta
a gente não fica mais”, ela lembra de tê-lo
ouvido gritar. “Morri de medo de voltar para lá,
principalmente na primeira noite. Mas o que a gente faria aqui?
Sem trabalho, sem terra. Em Batata a gente tinha tudo. Tinha
nosso cantinho, plantava um milho, um plátano, fazia
um dinheirinho. Tudo o que precisa, ainda tem lá”,
a morena forte explica, com um sorriso meigo, meio encabulado.
Sua família foi a primeira a fazer o caminho de volta,
quatro meses após a expulsão do povoado. A estrada,
então, já estava tomada pelo mato e era impossível
seguir de carro após um determinado ponto. O grupo teve
que caminhar por cerca de uma hora, carregando as trouxas com
roupas e alguns poucos pertences. “O corregimento
estava às moscas. Tinha montes de areia por tudo e os
animais tinham morrido de fome”, diz Maria Tereza. A guerrilha,
no entanto, não roubou nada do que a família havia
sido obrigada a deixar para trás. “Ainda estava
tudo lá, do jeito que a gente tinha deixado”.
Colchón, que retornou a Batata dois meses mais tarde,
não teve a mesma sorte. “Fui acompanhado do padre
Jorge, só para pegar umas coisas minhas. Depois do que
eu vi não quis mais ficar por lá não. Voltei
para Tierralta”. A casa onde vivia tinha sido queimada
e tudo o que possuía, virado cinzas. Por sorte lhe restaram
as ferramentas, que ele havia levado para Cartagena, com as
quais hoje fabrica e arruma equipamentos para os produtores
da região, trabalho que lhe garante comida todos os dias.
A maioria, entretanto, foi para ficar. Até maio de 1997
mais de 3600 pessoas, pertencentes a 686 famílias, retornaram
ao povoado. Como assistência inicial, receberam 80 toneladas
de milho do Programa Aurora, construíram o maquinário
necessário, pilaram e distribuíram o produto entre
o próprio grupo.
O
Programa Aurora também obteve verba para a fundação
de três microempresas: de processamento de frutas, transporte
de produtos da região e construção de tetos
de palma. As empresas garantiram a subsistência de muitos
dos refugiados. O que era produzido por uma, era transportado
pela outra, e vendido em Tierralta, como antes do deslocamento,
aos mercados locais e da região.
Os que voltaram, fundaram também a Associação
de Cultivadores de Milho recuperaram as terras ainda abandonadas.
Com o lucro das primeiras colheitas, foi possível comprar
um trator, uma piladora de milho e uma sede própria.
No entanto, o grupo continuou sofrendo os efeitos dos enfrentamentos
entre grupos armados: ameaças, desaparições
e assassinatos.
José Murillo fixa seus olhos negros, brilhantes com as
lágrimas que se recusam a cair, nos meus: “Dois
amigos meus foram assassinados quando voltavam para Batata.
Ninguém sabe quem foi, ninguém viu. No campo,
as casas ficam longe umas das outras. O sujeito não se
dá conta de quem chega. Eles (os grupos armados) chegam,
matam e vão embora, sem que ninguém veja nada”.
O crime, ele garante, não foi por dinheiro. As vítimas
eram donas de sete hectares de terra, que ficaram intocados.
“Tudo o que eles tinham no rancho ficou lá”,
afirma Murillo. “Mas também não imagino
o que se passou pela cabeça dos assassinos. Eu conhecia
os dois (mortos) e eles eram pessoas corretas. Não sei
do que podiam ser culpados”.
José Pedrahita também afirma ter conhecido pessoas
que foram executadas depois de retornarem a Batata. “Era
gente que tinha umas cabeças de gado. Os paracos
(paramilitares) mataram eles para roubar a criação”,
explica, quase inaudível, depois de me pedir para desligar
o gravador. “Por aqui, quanto menos você tem, menos
risco você corre”. Colchón confirma a teoria.
“Aparece um grupo armado e manda o colono ir buscar o
gado que ele cria lá no morro. Quando o sujeito volta,
eles perguntam: ‘Esse gado aí é teu?’.
E o sujeito tem que dizer que não, se não morre.
Imagine: a vaquinha que você investiu para criar, trabalhou,
e que vai te dar dinheiro para comprar comida para os filhos
no final do mês. Aí chega um grupo e leva. E você
ainda tem que dizer que é dele”.
Com o passar do tempo, as dificuldades não se restringiam
à segurança. Em assembléias, os camponeses
discutiam a política agrária do governo, que passou
a comprar o milho a preços baixos, tornando deficitário
o cultivo do produto.
Ao mesmo tempo, o Programa Aurora começou a sofrer denúncias
de que os recursos levantados pelo Estado estariam sendo desviados
para localidades fora da cobertura do projeto. Relatórios
da própria Casa da Cultura Camponesa de Tierralta, afirmam,
que a forma de aplicação do dinheiro, não
obedecia a um critério de “organização
comunitária com igualdade de oportunidades, mas sim ao
de uma campanha política e clientelista”. |
O Zero esteve lá
Nesta e nas matérias "O
dinheiro aqui vem de cultivos ilícitos" e Povo
sem chão, sem emprego e comida,
você mergulha num relato colhido diretamente junto ao,
também sofrido, povo da Colômbia. São trechos
do trabalho de conclusão de curso, Guerreiros –
A saga de um povo que se mata, de Márcia Bizzotto,
defendido no final do segundo semestre de 2001, com orientação
do professor Henrique Finco, aqui no Curso de Jornalismo da
UFSC. Tarefa elogiável, naturalmente aprovada pela banca
examinadora, onde se destacam pelo menos três virtudes.
A coragem da jovem repórter em apostar numa investigação
em território onde mortes e assassinatos estão
mais banalizados que no Brasil. Sensibilidade, por perceber
e resgatar a tragédia do povo colombiano, especialmente
os camponeses, esquecidos e destituídos de formas mínimas
de proteção no fogo cruzado entre paramilitares,
guerrilha, exército e narcotraficantes. Por fim, a qualidade
que conseguiu imprimir em seu relato, despretencioso e fluído,
mas muito eficaz na tradução do cotidiano de um
povo órfão, que ainda evoca as tragédias
da Macondo original (e nem tanto ficcional) de Cem anos
de solidão de Gabriel García Márquez.
Com a cara e a coragem ela foi lá. E voltou com este
relato que entregamos para a seu juízo. |
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Se você tiver algum problema
ao navegar nesta página envie um email para
zero@cce.ufsc.br.
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Visite
a geleria de capas do jornal impresso e conheça um
pouco
mais da história do Zero.
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