Número 1 - Ano I - Edição fechada em 29 de Julho de 2002 Florianópolis-SC
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A pichação no posto de gasolina indica território dos paramilitares, que se denominam Autodefesas Unidas na Colômbia / Foto: Márcia Bizzoto - ZeroEle não me olhava nos olhos. Deitado na rede pendurada na varanda dos fundos da casa, deu ordem à esposa e ao casal de filhos para se retirarem e fecharem a porta que dá acesso à cozinha.
Não queria que ninguém ouvisse nossa conversa. A camisa de botões aberta no peito deixava à mostra uma corrente dourada, reluzindo sobre a pele morena de crioulo. Disse ter 43 anos e, surpreendentemente, os cabelos ainda negros e a pele conservada aparentavam essa idade. Em Tierralta todos pareciam ao menos dez anos mais velhos. Ele era uma rara exceção. Pudera: não trabalhava na roça ou no comércio, como a maioria. Não precisava se preocupar com as incertezas do tempo ou da política colombiana, pois recebia salário fixo todo fim de mês. Jorge era paramilitar por profissão, líder da facção que controla Tierralta.

Formado em química e biologia, com especialização em pedagogia e ética, Jorge era professor na Universidade de Montería e, por isso, conhecido como “Profi”. Fui apresentada a ele, horas antes, por Lucia Milanez, diretora – e única funcionária – do escritório da Cruz Vermelha da Colômbia em Tierralta. Com jeito autoritário e um pouco rude, aquela crioula esguia, 33 anos, impunha respeito. Ela conhecia todos os lados da guerra na região e conversava, com qualquer um, sem medo. O trabalho frente à Cruz Vermelha lhe dava certa liberdade para falar com quem quisesse. A experiência na cidade, lhe deu sabedoria, para não perguntar tudo o que quisesse.

Convencer Jorge a me dar uma entrevista não foi difícil. “Para nós interessa que a imprensa do Brasil e de todo o mundo saiba o trabalho que desenvolvemos aqui, que não é só guerra”, o paramilitar assegurou, indicando que eu seria alvo de propaganda pró-paramilitarismo. Nos encontramos na praça em frente à igreja, reunido com alguns moto-taxistas, observando a procissão que outras dezenas deles faziam ao redor de toda a cidade. Era uma tarde abafada, mas de céu carregado de nuvens, coisa rara em Tierralta.

O movimento era uma homenagem a um moto-taxista de 19 anos, que havia sido encontrado morto naquela manhã, em uma vereda próxima a Tierralta. O garoto tinha desaparecido havia três dias. Jorge contou que os paramilitares saíram em sua busca e encontraram sua moto sendo usada por um rapaz desconhecido, que teria confessado o crime e levado os paracos ao local onde o corpo estava. Ainda, segundo a versão pouco confiável do líder paramilitar, o assassino confesso foi executado pelo grupo que, como é comum, deu sumiço a seu corpo. Os paracos, então, retornaram a Tierralta com o cadáver do jovem moto-taxista, em um ato considerado heróico.

A verdade sobre aquele caso, no entanto, era obscura e, tratando-se de um território completamente dominado pelas leis dos paramilitares, a polícia jamais investigaria o assassinato. O boato que corria na cidade, de fato, era um pouco diferente da história contada por Jorge e os moto-taxistas. Na igreja, dizia-se que o garoto assassinado fora acusado de ser informante das FARC e morto a punhaladas pelos próprios moto-taxistas, que trouxeram seu corpo para a cidade, tentando passar por heróis.

O jovem foi velado sobre a carroceria de uma camionete na rua em frente à igreja, cercado por uma pequena multidão que se recusava a chorar. “Se o morto é um guerrilheiro e alguém chora a morte dele, pronto! Pode até morrer. Dizem que também é guerrilheiro”, teorizava Elliot, jovem seminarista que vive em Tierralta. Ao mesmo tempo, dentro da igreja, outro velório ainda estava sendo finalizado, este de um senhor que havia, supostamente, cometido suicídio – mais um caso mal explicado e que também nunca seria resolvido.

A fila de motos continuava girando em torno da cidadezinha enquanto eu seguia Jorge, abrindo espaço entre a multidão e a poeira, até sua casa, uma construção de alvenaria com três quartos divididos por paredes inteiras, um banheiro e uma cozinha de bom tamanho – a maioria dos casebres de Tierralta parecem pequenos galpões de madeira, com teto de zinco ou palha, redes penduradas em um canto chamado de quarto, um banheiro e uma cozinha diminutos.

Por determinação do paramilitar, não levei meu gravador. Preferi não arriscar e não levei, também, minha câmera fotográfica. Apesar de ter chegado a Jorge por intermédio de Lucia, não me sentia completamente segura. Por alguma razão além de minha própria compreensão, eu não confiava muito naquela mulher. Em meio à confusão daquela tarde, era pouco provável que alguém tivesse me visto entrar na casa de Jorge e, contrariando todas as normas de segurança, eu não tinha comunicado meus passos a ninguém. Temia ser repreendida pelos padres ou seminaristas, que defendiam que, para meu próprio bem, eu deveria manter distância de paramilitares e guerrilheiros.

Jorge puxou uma cadeira de plástico para perto da rede e, ao mesmo tempo gentil e imponente, mandou que me sentasse nela. Então tirou os sapatos e deitou-se na rede, que pendia um pouco acima do nível de meus olhos, de forma que eu tinha que levantar a cabeça e olhá-lo de baixo para cima. Ele tirou os óculos escuros, estufou o peito e começou a falar, sem que eu tivesse perguntado nada.

Lucia havia me instruído a não usar a palavra paramilitar com Jorge. “Os paracos se sentem ofendidos. Use autodefesas, que soa melhor”.

Jorge começou seu discurso definindo os grupos paramilitares – ou autodefesas, como ele preferia – como um movimento social, não militar. “Nosso trabalho consiste em organizar a comunidade para que ela se desenvolva”, e explicou que, apenas no mês de julho, o grupo realizou dezoito reuniões com a população de Tierralta. Na pauta, assuntos como o fornecimento de eletricidade para o município, pintura das casas e até a corrupção no governo. As AUC exigem atuação eficaz do governo “por meio do diálogo”, enfatizou. “Temos muitos amigos no governo. Estamos sempre em contato”.

No caso de Tierralta, o líder dos paramilitares contou que três prefeitos foram presos por corrupção graças às investigações e denúncias dos membros de seu grupo. Outros três foram assassinados após cumprir o mandato. Diante da pergunta de quem os matou, a resposta veio em forma de silêncio. Ele se esquivava de perguntas sobre as ações de extermínio das Autodefesas. Preferia lembrar as obras sociais. “Nós fizemos muito pela comunidade. E fizemos com recursos próprios”.

O conceito de recursos próprios é mal explicado. O líder paramilitar revelou que as verbas para administrar a cidade provêm de toda a população. “A quantia que se doa é voluntária, cada um dá o quanto quer. Mas todos têm que colaborar, a gente cobra. Colaboravam com os guerrilheiros antes!”, assegura, sem responder, o que acontece com quem não lhes der dinheiro.

Até 1982 Tierralta era controlada pelas FARC. “A miséria era grande aqui”, diz Jorge. “Por meio da guerra, as AUC puderam começar a desenvolver um trabalho social. Depois que a cidade ficou livre dos guerrilheiros, a vida melhorou”, ele garante, citando projetos de plantios alternativos e de conservação e embelezamento da cidade, desenvolvidos pelo grupo paramilitar com o dinheiro cobrado dos moradores de Tierralta.

A guerra agora, conta, está afastada do município, “foi lá pra cima, nas veredas”. E os paramilitares estão tentando expulsar os guerrilheiros também daquela região, onde fica Batata. “O exército sabe que as FARC controlam tudo por lá e não toma providências. Nossa organização, quando descobre uma coisa dessas, por meio dos informantes, logo manda uns 140 homens pra defender a região”, ilustra Jorge.

Ele foi convidado a ingressar no grupo paramilitar em 1997. “Eles estavam interessados nos meus conhecimentos de química e biologia, queriam que eu ajudasse nos projetos de piscicultura e de plantações de papaia que estavam desenvolvendo para a comunidade de Tierralta”, explica o agora líder intelectual da facção local. Antes de entrar para as AUC Jorge recebeu cursos de capacitação. “Ensinaram pra mim que se deve respeitar crianças e idosos e que se deve tratar bem a comunidade”. Atualmente é ele quem dá capacitação para os patrulheiros.

Ele assegura que a organização ganha mais adeptos a cada dia. “Nós nunca convocamos o povo para as Autodefesas. Só queremos que ele trabalhe por si mesmo, que se desenvolva. E ele já está vendo os resultados, a comunidade está contente com nosso trabalho e quer participar”. Muitos dos novos adeptos, diz, são guerrilheiros desertores. “Mais de cem ex-guerrilheiros já passaram para o lado das AUC, desde que eu entrei, só aqui na região. E eles nos dizem onde as FARC estão e o que fazem. Eles conhecem o jeito dos ex-companheiros, nos levam até eles. É por isso que os guerrilheiros têm um medo que se pelam da gente, porque sabem que nós sabemos tudo o que fazem”.

Jorge lembra que os grupos paramilitares existem por vontade de parte da população colombiana. “Os grandes fazendeiros, os ricos deste país, estavam cheios de serem seqüestrados e extorquidos pelos guerrilheiros. Eles estão investindo muito dinheiro nas AUC”.

Pergunto sobre as acusações de ligação com cartéis de drogas. Os olhos de Jorge fitam os meus pela primeira vez: “Todos plantam coca neste país. Para que mentir? O dinheiro aqui vem dos cultivos ilícitos”, admite, depois de alguns segundos de silêncio, acrescentando que os paramilitares executam qualquer pessoa que cultive coca para os guerrilheiros em seus territórios. “As FARC dizem que não plantam coca, que só cobram um imposto dos plantadores, mas está claro que na Colômbia todo mundo planta coca”.

Naquele momento, dois homens, aparentando 60 e 35 anos, abriram a porta que dava para a varanda sem pedir licença. A expressão de Jorge indicou que o assunto estava encerrado. “Eles trabalham comigo na organização”, confirmou o que eu, reparando no modo como estavam vestidos, já havia percebido.

De repente passei de entrevistadora a entrevistada. Indagaram se eu já havia conversado com algum guerrilheiro, queriam saber onde eu estava hospedada e quando deixaria a cidade. O fato de ser protegida pelos padres me dava certa imunidade, mas nem o respeito que a igreja conquistou com todos os grupos armados faria diferença se minhas ações fossem consideradas suspeitas. Quando fosse embora de Tierralta, eu ainda teria que pegar uma lenta estrada esburacada até Montería e não queria nenhuma surpresa desagradável de última hora. Menti em todas as respostas, agradeci a atenção e encerrei a entrevista.

Márcia Bizzotto

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