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JORNALISMO
- UFSC
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Ele
não me olhava nos olhos. Deitado na rede pendurada na
varanda dos fundos da casa, deu ordem à esposa e ao casal
de filhos para se retirarem e fecharem a porta que dá
acesso à cozinha.
Não queria que ninguém ouvisse nossa conversa.
A camisa de botões aberta no peito deixava à mostra
uma corrente dourada, reluzindo sobre a pele morena de crioulo.
Disse ter 43 anos e, surpreendentemente, os cabelos ainda negros
e a pele conservada aparentavam essa idade. Em Tierralta todos
pareciam ao menos dez anos mais velhos. Ele era uma rara exceção.
Pudera: não trabalhava na roça ou no comércio,
como a maioria. Não precisava se preocupar com as incertezas
do tempo ou da política colombiana, pois recebia salário
fixo todo fim de mês. Jorge era paramilitar por profissão,
líder da facção que controla Tierralta.
Formado em química e biologia, com especialização
em pedagogia e ética, Jorge era professor na Universidade
de Montería e, por isso, conhecido como “Profi”.
Fui apresentada a ele, horas antes, por Lucia Milanez, diretora
– e única funcionária – do escritório
da Cruz Vermelha da Colômbia em Tierralta. Com jeito autoritário
e um pouco rude, aquela crioula esguia, 33 anos, impunha
respeito. Ela conhecia todos os lados da guerra na região
e conversava, com qualquer um, sem medo. O trabalho frente à
Cruz Vermelha lhe dava certa liberdade para falar com quem quisesse.
A experiência na cidade, lhe deu sabedoria, para não
perguntar tudo o que quisesse.
Convencer Jorge a me dar uma entrevista não foi difícil.
“Para nós interessa que a imprensa do Brasil e
de todo o mundo saiba o trabalho que desenvolvemos aqui, que
não é só guerra”, o paramilitar assegurou,
indicando que eu seria alvo de propaganda pró-paramilitarismo.
Nos encontramos na praça em frente à igreja, reunido
com alguns moto-taxistas, observando a procissão que
outras dezenas deles faziam ao redor de toda a cidade. Era uma
tarde abafada, mas de céu carregado de nuvens, coisa
rara em Tierralta.
O movimento era uma homenagem a um moto-taxista de 19 anos,
que havia sido encontrado morto naquela manhã, em uma
vereda próxima a Tierralta. O garoto tinha desaparecido
havia três dias. Jorge contou que os paramilitares saíram
em sua busca e encontraram sua moto sendo usada por um rapaz
desconhecido, que teria confessado o crime e levado os paracos
ao local onde o corpo estava. Ainda, segundo a versão
pouco confiável do líder paramilitar, o assassino
confesso foi executado pelo grupo que, como é comum,
deu sumiço a seu corpo. Os paracos, então,
retornaram a Tierralta com o cadáver do jovem moto-taxista,
em um ato considerado heróico.
A verdade sobre aquele caso, no entanto, era obscura e, tratando-se
de um território completamente dominado pelas leis dos
paramilitares, a polícia jamais investigaria o assassinato.
O boato que corria na cidade, de fato, era um pouco diferente
da história contada por Jorge e os moto-taxistas. Na
igreja, dizia-se que o garoto assassinado fora acusado de ser
informante das FARC e morto a punhaladas pelos próprios
moto-taxistas, que trouxeram seu corpo para a cidade, tentando
passar por heróis.
O jovem foi velado sobre a carroceria de uma camionete na rua
em frente à igreja, cercado por uma pequena multidão
que se recusava a chorar. “Se o morto é um guerrilheiro
e alguém chora a morte dele, pronto! Pode até
morrer. Dizem que também é guerrilheiro”,
teorizava Elliot, jovem seminarista que vive em Tierralta. Ao
mesmo tempo, dentro da igreja, outro velório ainda estava
sendo finalizado, este de um senhor que havia, supostamente,
cometido suicídio – mais um caso mal explicado
e que também nunca seria resolvido.
A fila de motos continuava girando em torno da cidadezinha enquanto
eu seguia Jorge, abrindo espaço entre a multidão
e a poeira, até sua casa, uma construção
de alvenaria com três quartos divididos por paredes inteiras,
um banheiro e uma cozinha de bom tamanho – a maioria dos
casebres de Tierralta parecem pequenos galpões de madeira,
com teto de zinco ou palha, redes penduradas em um canto chamado
de quarto, um banheiro e uma cozinha diminutos.
Por determinação do paramilitar, não levei
meu gravador. Preferi não arriscar e não levei,
também, minha câmera fotográfica. Apesar
de ter chegado a Jorge por intermédio de Lucia, não
me sentia completamente segura. Por alguma razão além
de minha própria compreensão, eu não confiava
muito naquela mulher. Em meio à confusão daquela
tarde, era pouco provável que alguém tivesse me
visto entrar na casa de Jorge e, contrariando todas as normas
de segurança, eu não tinha comunicado meus passos
a ninguém. Temia ser repreendida pelos padres ou seminaristas,
que defendiam que, para meu próprio bem, eu deveria manter
distância de paramilitares e guerrilheiros.
Jorge puxou uma cadeira de plástico para perto da rede
e, ao mesmo tempo gentil e imponente, mandou que me sentasse
nela. Então tirou os sapatos e deitou-se na rede, que
pendia um pouco acima do nível de meus olhos, de forma
que eu tinha que levantar a cabeça e olhá-lo de
baixo para cima. Ele tirou os óculos escuros, estufou
o peito e começou a falar, sem que eu tivesse perguntado
nada.
Lucia havia me instruído a não usar a palavra
paramilitar com Jorge. “Os paracos se sentem
ofendidos. Use autodefesas, que soa melhor”.
Jorge começou seu discurso definindo os grupos paramilitares
– ou autodefesas, como ele preferia – como um movimento
social, não militar. “Nosso trabalho consiste em
organizar a comunidade para que ela se desenvolva”, e
explicou que, apenas no mês de julho, o grupo realizou
dezoito reuniões com a população de Tierralta.
Na pauta, assuntos como o fornecimento de eletricidade para
o município, pintura das casas e até a corrupção
no governo. As AUC exigem atuação eficaz do governo
“por meio do diálogo”, enfatizou. “Temos
muitos amigos no governo. Estamos sempre em contato”.
No caso de Tierralta, o líder dos paramilitares contou
que três prefeitos foram presos por corrupção
graças às investigações e denúncias
dos membros de seu grupo. Outros três foram assassinados
após cumprir o mandato. Diante da pergunta de quem os
matou, a resposta veio em forma de silêncio. Ele se esquivava
de perguntas sobre as ações de extermínio
das Autodefesas. Preferia lembrar as obras sociais. “Nós
fizemos muito pela comunidade. E fizemos com recursos próprios”.
O conceito de recursos próprios é mal explicado.
O líder paramilitar revelou que as verbas para administrar
a cidade provêm de toda a população. “A
quantia que se doa é voluntária, cada um dá
o quanto quer. Mas todos têm que colaborar, a gente cobra.
Colaboravam com os guerrilheiros antes!”, assegura, sem
responder, o que acontece com quem não lhes der dinheiro.
Até 1982 Tierralta era controlada pelas FARC. “A
miséria era grande aqui”, diz Jorge. “Por
meio da guerra, as AUC puderam começar a desenvolver
um trabalho social. Depois que a cidade ficou livre dos guerrilheiros,
a vida melhorou”, ele garante, citando projetos de plantios
alternativos e de conservação e embelezamento
da cidade, desenvolvidos pelo grupo paramilitar com o dinheiro
cobrado dos moradores de Tierralta.
A guerra agora, conta, está afastada do município,
“foi lá pra cima, nas veredas”. E os paramilitares
estão tentando expulsar os guerrilheiros também
daquela região, onde fica Batata. “O exército
sabe que as FARC controlam tudo por lá e não toma
providências. Nossa organização, quando
descobre uma coisa dessas, por meio dos informantes, logo manda
uns 140 homens pra defender a região”, ilustra
Jorge.
Ele foi convidado a ingressar no grupo paramilitar em 1997.
“Eles estavam interessados nos meus conhecimentos de química
e biologia, queriam que eu ajudasse nos projetos de piscicultura
e de plantações de papaia que estavam desenvolvendo
para a comunidade de Tierralta”, explica o agora líder
intelectual da facção local. Antes de entrar para
as AUC Jorge recebeu cursos de capacitação. “Ensinaram
pra mim que se deve respeitar crianças e idosos e que
se deve tratar bem a comunidade”. Atualmente é
ele quem dá capacitação para os patrulheiros.
Ele assegura que a organização ganha mais adeptos
a cada dia. “Nós nunca convocamos o povo para as
Autodefesas. Só queremos que ele trabalhe por si mesmo,
que se desenvolva. E ele já está vendo os resultados,
a comunidade está contente com nosso trabalho e quer
participar”. Muitos dos novos adeptos, diz, são
guerrilheiros desertores. “Mais de cem ex-guerrilheiros
já passaram para o lado das AUC, desde que eu entrei,
só aqui na região. E eles nos dizem onde as FARC
estão e o que fazem. Eles conhecem o jeito dos ex-companheiros,
nos levam até eles. É por isso que os guerrilheiros
têm um medo que se pelam da gente, porque sabem que nós
sabemos tudo o que fazem”.
Jorge lembra que os grupos paramilitares existem por vontade
de parte da população colombiana. “Os grandes
fazendeiros, os ricos deste país, estavam cheios de serem
seqüestrados e extorquidos pelos guerrilheiros. Eles estão
investindo muito dinheiro nas AUC”.
Pergunto sobre as acusações de ligação
com cartéis de drogas. Os olhos de Jorge fitam os meus
pela primeira vez: “Todos plantam coca neste país.
Para que mentir? O dinheiro aqui vem dos cultivos ilícitos”,
admite, depois de alguns segundos de silêncio, acrescentando
que os paramilitares executam qualquer pessoa que cultive coca
para os guerrilheiros em seus territórios. “As
FARC dizem que não plantam coca, que só cobram
um imposto dos plantadores, mas está claro que na Colômbia
todo mundo planta coca”.
Naquele momento, dois homens, aparentando 60 e 35 anos, abriram
a porta que dava para a varanda sem pedir licença. A
expressão de Jorge indicou que o assunto estava encerrado.
“Eles trabalham comigo na organização”,
confirmou o que eu, reparando no modo como estavam vestidos,
já havia percebido.
De repente passei de entrevistadora a entrevistada. Indagaram
se eu já havia conversado com algum guerrilheiro, queriam
saber onde eu estava hospedada e quando deixaria a cidade. O
fato de ser protegida pelos padres me dava certa imunidade,
mas nem o respeito que a igreja conquistou com todos os grupos
armados faria diferença se minhas ações
fossem consideradas suspeitas. Quando fosse embora de Tierralta,
eu ainda teria que pegar uma lenta estrada esburacada até
Montería e não queria nenhuma surpresa desagradável
de última hora. Menti em todas as respostas, agradeci
a atenção e encerrei a entrevista. |
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